Há anos o estado de São Paulo tem sido pródigo em levar adiante projetos considerados bem-sucedidos em áreas tão diversas como assistência social, saúde, educação e cultura, a exemplo do Bom Prato, dos Ambulatórios Médicos de Especialidades (AME) e de serviços de diagnóstico, da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), Sala São Paulo, Pinacoteca e do Memorial da Resistência.
A assertividade dessa fórmula levou o então governador Márcio França a baixar, no final do ano passado, o Decreto nº 64.056, estabelecendo que o prazo de duração dos contratos de gestão não deverá ser inferior a dois anos nem ultrapassar dez anos. As organizações que hoje fazem a gestão dos equipamentos públicos foram definidas após processo licitatório.
Por óbvio, independentemente do estado onde vigora o contrato de gestão, a tendência é que haja cada vez mais controle por parte da administração pública, principalmente em tempos de crise financeira e consequente “contingenciamento” de verbas. Além de ter os balanços financeiros auditados e publicados na imprensa, relatórios com as contas são enviados periodicamente à administração pública. Na esfera federal, por exemplo, acirra-se o controle do emprego do recurso público social.
“A Medida Provisória 870/2019, de 1º de janeiro, delegou poderes à Secretaria do Governo, para promover maior controle das organizações não governamentais (ONGs)”, comenta o advogado Marcos Biasioli, sócio do M. Biasioli Advogados, membro do conselho editorial da revista Filantropia e vice-presidente da Primeira Comissão de Direito do Terceiro Setor do Brasil, por meio da OAB/SP.
Segundo o artigo 5º da MP, que tem dez itens, “À Secretaria de Governo da Presidência da República compete: II - supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional; ...”.
Favorável à chamada “Privatização da Assistência Social”, Biasioli, assim como os seus colegas advogados Ricardo Curia Montemagni e Thais Jennifer Freire Amancio da Rocha, defendem esse ponto de vista.
“Não seria a hora deste novo e entusiasta governo repensar não só um novo e rigoroso modelo de política pública social, mas sim um novo conceito? Seria ousadia ou até utopia para muitos estudiosos e ativistas sociais refletir sobre a ‘privatização’ da assistência social?”, questiona o trio, em recente artigo escrito sobre o assunto.
Diretor-executivo da Associação Brasil de Captadores de Recursos (ABCR), o advogado e mestre em administração pública João Paulo Vergueiro argumenta que, em primeiro lugar, é importante entender o papel das organizações da sociedade civil.
Segundo o especialista, as ONGs não existem para substituir o governo ou porque ele é ineficiente. As organizações são parte da democracia, compõem o tecido social que torna a nossa democracia mais forte. Existem em todos os países onde há liberdade, para garantir a defesa de direitos, a promoção de causas e a transformação da sociedade.
“Quando analisamos a possibilidade de termos as organizações assumindo a gestão de espaços públicos, como centros culturais, museus, postos de saúde e, eventualmente, até escolas, ela tem que ser vista dentro desse contexto: não da organização assumindo a responsabilidade que deveria ser do Estado, mas fazendo parceria com o próprio para garantir uma gestão mais eficiente e que retorne ainda mais impacto para a sociedade – mas que, no final, ainda é de competência do Estado”, descreve.
Vergueiro, entretanto, alerta para o risco desse modelo tornar a organização dependente do recurso público. “Como a administração transfere não somente a gestão do espaço, mas também uma boa quantidade de recursos, esse modelo pode tornar a organização muito vulnerável no futuro, caso o orçamento seja cortado”, observa.
O gestor também defende que, na captação de recursos, haja a diversificação das fontes de receita, evitando-se, com isso, depender de um único financiador que represente mais de 30% da receita da organização. Em seu entender, o modelo de gestão de espaços públicos por organizações da sociedade civil muitas vezes leva a isso, tamanho é o aporte financeiro do governo.
“É uma grande ameaça para as organizações. O melhor é sempre investir em captação de recursos e garantir que a instituição seja financeiramente independente. Diversifique suas receitas, tenha doadores. Isso faz a diferença”, recomenda.
Para a especialista em desenvolvimento institucional e avaliação socioambiental Carol Zanoti, uma das motivações dos que defendem a terceirização da gestão de equipamentos públicos para organizações sociais e iniciativa privada é a eficiência da gestão, desde que se incluam dois princípios: a referência no atendimento diante da causa, para as primeiras, e a lucratividade, para a segunda.
No caso específico da área da saúde, explica ela, é imprescindível entender que existem vinculações constitucionais que estabelecem limites mínimos a serem aplicados pelos entes federados.
“Esses limites mínimos estão congelados desde a PEC nº 241/2016, por 20 anos – de 2017 a 2036 – em termos reais, a despesa primária no patamar de 2016, forçando que muitas metas estabelecidas para o SUS ficassem inoperantes e desconsiderassem as mutações socioeconômicas e de acesso a direitos preconizados constitucionalmente”, argumenta.
Carol ressalta que a relação entre Estado e organizações sociais ainda carece de transparência suficiente no modo como são dispostos e analisados dados referentes a diagnóstico, licitação, monitoramento, avaliação de processos e aporte dos recursos públicos, inclusive com metas completamente desajustadas.
“Mesmo para quem tem costume de pesquisar em diários oficiais, a transparência desse processo, que deveria levar à eficiência da gestão, torna-se um trabalho hercúleo, na hora de comprovar se o serviço ‘x’ ou ‘y’ é realizado por uma organização social”, enfatiza.
Segundo a especialista, as organizações sociais são, na teoria, filantrópicas. Na prática, porém, funcionam com modelos de gestão privados, pois suas ações são por prestação de serviços.
“Os equipamentos de saúde geridos pelas organizações sociais atualmente custam aproximadamente 50% a mais do que aqueles geridos diretamente pelo poder público, de acordo com dados do Sistema de Informações Gerenciais da Execução Orçamentária (SIGEO). Além disso, um terço desses equipamentos não publicou seu balanço e um quarto apresentou patrimônio negativo, portanto 80% das que apresentaram balanço estão quebradas”, observa.
Para a especialista, há vários motivos para os déficits, sendo o principal deles o orçamento inadequado. “No processo de terceirização dos serviços de saúde, entre outros, os contratos ou convênios são negociados, pelas partes, já sabendo que os recursos não serão suficientes para cobrir as metas de atendimento. Muitos termos e contratos aditivos são assinados somente para cobrir a diferença dos prejuízos. Além disso, o governo do estado [de São Paulo] tem mantido as metas de atendimento e reduzido os orçamentos por ano, por conta de contingenciamentos. É uma conta que não bate”, argumenta Carol.
O Brasil está repleto de bons e maus modelos da chamada terceirização da assistência social. Um exemplo positivo é a Associação Pinacoteca Arte e Cultura (Apac), sociedade civil de direito privado e sem fins lucrativos criada em 1992 com o objetivo de apoiar o funcionamento do museu, hoje com cerca de 10 mil obras.
Qualificada no final de 2005 como Organização Social de Cultura, a Apac assumiu, a partir de 2006, a gestão do museu para execução da política cultural definida pelo governo do estado. Atualmente é responsável pela gestão da Pina_Luz, Pina_Estação e do Memorial da Resistência.
A entidade renovou contrato com o governo paulista no fim de 2018 com validade até 2022, e presta contas à administração pública em relatórios trimestrais.
De acordo com o balanço financeiro relativo ao ano passado e auditado pela KPMG, a Apac registrou R$ 22,2 milhões em recursos advindos do contrato de gestão com o poder público. A organização também arrecadou R$ 629 mil em venda de ingressos, R$ 1,158 milhão com a comercialização de produtos na loja e R$ 214 mil em patrocínios não incentivados. Entre receitas e despesas, fechou as contas de 2018 com superávit de R$ 282 mil.
Outro exemplo interessante vem da Fundação Osesp, que gere e administra a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), a Sala São Paulo e o Festival de Inverno de Campos do Jordão. Para a temporada 2019 estão previstas mais de 120 apresentações, sendo 13 gratuitas.
A organização social encontra-se em seu terceiro ciclo contratual de parceria com o governo paulista, que termina em 31 de dezembro deste ano. Seus balanços contábeis são auditados pela PricewaterhouseCoopers.
Segundo o Relatório Gerencial de Orçamento Previsto X Realizado, a Osesp terminou 2018 com receitas de R$ 102,554 milhões, sendo R$ 55,282 milhões oriundos de repasse do contrato de gestão com o governo estadual. O caixa foi bem reforçado pela captação de outros R$ 34,2 milhões provenientes de recursos incentivados, patrocínios e assinaturas para as apresentações. Ao fechar com despesas totais de R$ 96,314 milhões, a Fundação obteve superávit de R$ 5,4 milhões (descontadas as amortizações e depreciações).
Responsável por gerir e administrar seis unidades do
Ambulatório Médico de Especialidades (AME) – Carapicuíba, Itu, Jundiaí, Jardim dos Prados e Pariquera-Açu e Santos –, a organização social Cruzada Bandeirante São Camilo Assistência Médico Social tem se destacado pela eficiência demonstrada em sua gestão.
Além dos AMEs citados, a entidade também administra o Hospital Geral de Carapicuíba e de Itapevi, além do Polo de Atenção Intensiva em Saúde Mental (PAI) – Baixada Santista, localizado em Santos, e das unidades de Pariquera-Açu e Santos da Rede de Reabilitação Lucy Montoro.
Nos últimos cinco anos, a parceria com o governo paulista repassou em torno de R$ 2,3 bilhões, o que torna a Cruzada Bandeirante uma das organizações sociais que mais recebem repasses do poder público no estado.
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