Santo Agostinho, importante teólogo e filósofo desde os primeiros séculos do Cristianismo, já nos instigava com a reflexão de que só vivemos o presente. Todavia, há três tipos de presente em que vivemos: o presente das coisas pretéritas (nossa memória), o presente do presente (percepção que temos do imediato) e o presente do futuro (expectativa do que virá).
Assim, a noção de presente, baseando-se no pensamento agostiniano, nos impulsiona a ter um olhar para o futuro com uma fluidez menos condicionada ao espaço temporal, isto é, a projeção do que viveremos em um dado momento será o agora em instantes.
Para ilustrar a ligeira metamorfose temporal, destacam-se algumas histórias que saíram rapidamente da ficção para a realidade. O fonoaudiólogo escocês Graham Bell, em 1876, tirou de uma pesquisa para aperfeiçoar seus estudos com surdos, a invenção do telefone. O pároco, Roberto Landell, em 1899, brasileiro, nascido no Sul, para popularizar o seu credo, foi o primeiro cientista a transmitir a voz humana pelo ar por meio das ondas de rádio. John Baird, outro escocês, em 1920, depois de vários estudos, montou um dos primeiros modelos de televisão. O americano, Martin Cooper, em 1973, anunciou a criação do primeiro celular (o qual pesava nada menos do que 2,5 kg, e hoje existe o modelo de 125 g). Em 1989, outro americano, Tim Berners-Lee, inventou o sistema de navegação na internet. O ucraniano Jan Koun, juntamente com o americano Brian Acton, criaram, em 2009, o WhatsApp, que, hoje, congrega mais de 1 bilhão de usuários. Tais singelas memórias demonstram o quão rápido o mundo tem freneticamente mudado. Os robôs estão por toda parte e vieram para substituir a rotina do homem, o carro voador já está se tornando uma realidade, algo que víamos apenas como pura ficção no desenho dos Jetsons, de 1962, por exemplo, que retratava uma cidade aérea.
E nessa tarefa hercúlea de concretizar o amanhã para atender às legítimas e plausíveis necessidades humanas de hoje, estamos nos deparando com outra ficção se transformando em realidade, qual seja: o conceito do Metaverso, que, em síntese, representa a evolução do universo 3D no mundo digital, valendo-se de combinação de ferramentas como realidade virtual (RV) e realidade aumentada (RA), permitindo nele inúmeras aplicações experimentadas no mundo real sem a obrigatoriedade de nele existir. Enfim, uma forma de convergência dos usuários que podem interagir dentro do mundo aumentado e virtual.
A terminologia metaverso, dentro da aplicação que se propõe atualmente, para muitos tem sua origem já no começo da década de 1990, quando da citação literária de Neal Stephenson, autor do livro “Nevasca” (“snow crash”), ao se referir a um mundo virtual em que pessoas viviam como na realidade, experiência depois revisitada em jogos como Second Life (2003), que traduziam, até então, uma ficção científica com uma abstração predominante. Agora, a visão a que se propõe o Metaverso é outra, mais ambiciosa.
Na confluência entre futuro e presente, Mark Zuckerberg, criador do Facebook, que, em 2021, passou a se chamar “Meta”, ao permear sobre o desenvolvimento do Metaverso em sua organização, relatou seu pensamento disruptivo a respeito: “O metaverso é a próxima fronteira, tal como as redes sociais eram quando começamos. Algumas pessoas acreditarão que essa não é a hora de focar no futuro, e quero reconhecer que há questões importantes para serem trabalhadas no presente. Sempre haverá. Estamos começando a ver várias dessas tecnologias se unindo nos próximos cinco ou dez anos. Muito disso vai se tornar popular e vários de nós criaremos e habitaremos diariamente em mundos [virtuais] que são tão detalhados e convincentes como este.”
A aplicação do Metaverso no cotidiano, seja social ou profissional, é um caminho sem volta. Bill Gates, por exemplo, enfatiza que em curto espaço de tempo a maioria das reuniões será no Metaverso. Portanto, é tempo de resiliência e metamorfose, para que não sejamos soterrados pelo avanço tecnológico.
O Terceiro Setor, sem dúvida alguma, será um grande (se não um dos maiores) beneficiário dessa adaptação evolutiva e compulsória, pois a aplicação do Metaverso funcionará como um binóculo, uma vez que aproximará os mundos, descortinando muitos percalços da mazela social que parecem distantes, em especial dos mais abastados, mas, em verdade, eles se tornarão próximos.
Os matizes do Metaverso não terão fronteiras, vejamos:
Não é de hoje o fato de que o estudante derivado de escolas de ponta, com experiência internacional, mais aculturado, com múltiplas línguas, viajado e antenado, solapa, no mercado de trabalho e na saga da sua construção profissional e econômica, aquele que não guarnece de tamanha sorte. Um estudo da Universidade Stanford apontou que estudantes abastados e desfavorecidos apresentaram uma diferença abismal de 125 pontos, índice que desanima a caminhada da concorrência do pobre, pois ela não é sadia.
É nesse contexto que a incendiária ferramenta tecnológica em exame pode fazer a diferença, pois as instituições educacionais beneficentes, por exemplo, também poderão entregar muito além do ensino a distância (EAD). Com o Metaverso terão a capacidade de proporcionar uma variante de experiências imersivas de compreensão e fixação de informações essenciais que, até então, somente o mundo real poderia proporcionar — e mais, para poucos. Vejamos, por exemplo, o que didaticamente e ilustrativamente trouxe Zuckerberg em seu vídeo institucional quando do rebranding de sua empresa para o nome “Meta”, ao tratar sobre hipóteses de aplicação do metaverso na educação, desde a astrofísica a um passeio pela Roma Antiga (minuto 33’ a 35’ do vídeo — o qual recomenda-se a experiência de sua visualização para “realizar” a ideia de Metaverso).
É algo incrível e inspirador imaginar que, por exemplo, uma modesta instituição educacional nos rincões de nosso país poderá (com uma parceria de fomento com uma entidade de grande porte ou mesmo iniciativa privada social, por meio, inclusive, de Endowment Funds ou responsabilidade social empresarial) proporcionar a alunos carentes e beneficiários da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) um verdadeiro intercâmbio virtual, cuja régua do ganho não mensurará apenas o enriquecimento lúdico cultural, mas notadamente o psicológico, pois será ativada a serotonina do estudante, abrindo os seus horizontes e o preparando para saltos mais voluptuosos, até então reservados para poucos.
É fato que no campo da saúde, incluindo os hospitais filantrópicos, a transformação anda galopante, em especial com a chegada da telemedicina, com a cirurgia por meio da robótica, o prontuário eletrônico, a receita digital e muito mais. Já está em estudo, inclusive, a implementação, a partir de um direcionamento legal do Ministério da Saúde, do sistema “open health”, ou seja, um modelo de padronização dos dados dos registros eletrônicos e prontuários de todos os pacientes, possibilitando o melhor compartilhamento dos dados de saúde, para facilitar o atendimento, as avaliações, sem falar da economia não só para o paciente, mas para os sistemas de saúde, o que evitaria a necessidade de repetição de exames e/ou pedidos dispensáveis.
Nessa mesma linha de transformação, alguns estudos estão mostrando que o Metaverso também já é uma realidade na saúde. Algumas matérias sobre o tema já trazem exemplos da sua aplicação prática, tais como: (i) nos tratamentos psiquiátrico e fisioterápicos, em que a proximidade virtual com o médico tende a minorar a ansiedade do paciente; (ii) o planejamento cirúrgico, pré, intra e pós-operatório, já está apresentando ganho, visto que incrementa a eficiência tanto do ponto de vista territorial como de qualidade; (iii) na capacitação de alunos, a técnica já está oferecendo uma versão 3600 da doença do paciente, facilitando a sua diagnose e a busca mais célere ao seu combate; (v) alguns neurocirurgiões da Johns Hopkins, nos EUA, iniciaram a realização de cirurgias com a utilização de RA, maximizando a precisão e o resultado. E por aí vão os avanços da nova ferramenta virtual.
É fato que a comunidade médica ainda anda cética com a novidade, em especial com a invasão da privacidade que a técnica pode trazer, bem como a dependência do paciente. Porém, como toda inovação protrai igual insegurança, ela não pode ser desprezada do radar da saúde pública, pois, pensando no universo de atendimentos do Sistema Único de Saúde (SUS), incluindo e, principalmente, por meio das filantrópicas, o quanto essa inovação tecnológica poderá contribuir até mesmo para minorar o fluxo de pacientes no hospital e, por sua vez, para diminuir males contagiosos e ajudar no processo de cura pelo meio lúdico da gamificação.
Assim, as entidades de saúde que congregam o Terceiro Setor, da mesma forma que buscam financiamento para equipamentos para exames e procedimentos médicos, que incluam também no seu radar orçamentário a saga pela busca das ferramentas do Metaverso.
Uma discussão tem dominado o palco filantrópico nos EUA, “Philanthrocapitalism versus Philanthropy for Social Justice” (Filantrocapitalismo versus Filantropia para a Justiça Social”). Filantrocapitalismo é a nova filantropia, também conhecida como “filantropia estratégica”, que deriva de investimento social. Visa torná-la mais parecida com o mercado de capitais. Os filantropos querem ser vistos como investidores sociais, ou seja, do mesmo modo que fazem com o mundo dos negócios. E a Filantropia para a Justiça Social é a Filantropia Progressista, que se contrapõe ao Filantrocapitalismo, pois versa que é papel da própria comunidade a construção de seu modelo de desenvolvimento, cuja missão não é dos capitalistas.
O Brasil tem aderido ao Filantrocapitalismo, mas sem perder de vista a filantropia social. Contudo, ambos os modelos reclamam o emprego de alguns ingredientes na saga da gestão social, quais sejam: retidão, transparência e a causa. A retidão da missão se dá por meio da efervescência do rigor econômico, a prática diuturna do emprego na causa, dos recursos que visitam o projeto, mediante técnicas de controle e modernos métodos de gestão econômica. A transparência perpassa pela técnica contábil e social, a ponto de não colocar o filantropo em rota de dúvida. A causa — rainha da filantropia — deve ser tratada com maestria e demonstrada não como mercadoria na prateleira de um supermercado, mas sim como um fim que reclama transformação.
Outrora utilizou-se de muitas técnicas de persuasão do capitalista (pequeno ou grande) filantropo para fidelizá-lo à causa. Apelos não faltaram, fotos e vídeos de crianças, jovens e idosos desnutridos, cartinhas sedutoras dos beneficiários, corais com homenagens, bingos, jantares, rifas e tudo mais que se podia e pode fazer, os movimentos se articulam (e articulavam) para o êxito da captação do recurso. O telemarketing não faltou e ainda não falta, a implantação de robôs tecnológicos arrecadadores e o mais que se avizinha na boa prática da sedução do investidor social.
Agora, o Metaverso pode colocar o filantropo dentro da realidade da mazela social, porém de modo virtual. Na prática, dificilmente um investidor social sai do seu âmbito doméstico ou comercial para visitar o berço dos focos sociais, por medo, comodidade e/ou falta de tempo. São raros aqueles que: (i) se embrenham nas comunidades carentes para flagrar a dificuldade; (ii) visitam projetos sociais de variadas matizes; (iii) viajam ao Agreste Nordestino para presenciar a falta do “tudo”; (iv) buscam conhecer a realidade das agruras da saúde pública, dos hospitais lotados, da falta de insumos médicos e humanos etc., além de muitas outras experiências que somente o contato visual pode, com fidelidade, espelhar e entregar a dimensão do problema.
É fato que a viagem virtual, faceta maior do Metaverso, ainda é ficção para muitas entidades sociais, principalmente pela jovialidade da ferramenta, associada ao seu custo. Mas é inegável que as “excursões virtuais” com players de grande capacidade de investimento, para conhecerem “de perto, ao vivo e em cores” para onde irão os recursos aplicados, seguramente elevarão a credibilidade do relacionamento e farão toda a diferença na transformação social.
Assim, saímos da discussão do “se” para “quando” o Metaverso no Terceiro Setor deixará a ficção e passará a ser realidade. Oxalá estejamos certos para que o futuro se torne logo, parafraseando novamente Santo Agostinho, o “presente do presente”.