Uma belle époque para o SUAS

Por: Instituto Filantropia
15 Abril 2013 - 20h19

Há pouco mais de 150 anos, Jean Valjean ressoa no imaginário coletivo da humanidade como uma prova inconteste da capacidade humana de se transformar, sendo-lhe necessária, algumas vezes, tão somente a oportunidade de um voto de confiança. Dada essa condição, Jean Valjean tornou-se precursor de certo empreendedorismo econômico, com expressivas conexões com o social.
Altruísta, solidário e compromissado em contribuir para a sociedade justa ao seu alcance, Valjean apresentou para a posteridade seu papel de vítima do poder do Estado, que além de obrigá-lo a delinquir para alimentar-se, apareceu pela primeira vez em sua vida para lhe tirar a liberdade por 19 anos.
Principal personagem do livro Os Miseráveis (1862), de Victor Hugo, monsieur Valjean habitou literariamente a Europa pós-revolução francesa, e da França demonstrou para a História os estragos de uma sociedade sem parâmetros de justiça na transição contraditória entre a nobreza e a república e todos os condicionantes que atingiram o homem comum em seu cotidiano de trabalhador.
Consolidado como um dos grandes relatos da História humana, candidato a ser lido por todos os milênios em que nossa civilização existir no planeta, o romance francês nos permite a metáfora irresistível da luta do bem contra o mal, da lida inaugurada pela razão Iluminista, ante uma sociedade, a partir de então, remanescente de sua hora mais escura, a Idade Média.
Ao completar um século e meio de existência, Os Miseráveis exibe uma extensa lista de interpretações, seja no cinema, no teatro, em incontáveis trabalhos acadêmicos e nas influências diretas e indiretas que atualizam e autorizam o destino de seus personagens a flertarem com a realidade que a cada época é reivindicada, permitindo como obra atemporal a aproximação livre dos eventos contemporâneos.
Dessa forma poeticamente libertária, podemos aproveitar mais uma eclosão de visibilidade do texto do ensaísta francês para nos referirmos à História recente do Brasil, que organiza pela primeira vez em todo seu percurso de nação uma legislação pertinente à área de proteção social.
A sociedade brasileira, com a tradição de não-direitos, exibe em sua trajetória um viço cartorial e discricionário. A partir de um olhar particular aos diversos períodos de nossa História, encontram-se os traços que determinam os valores, hábitos e atitudes de uma institucionalidade não produtora dos princípios da convivência cidadã, custando a gerações a fio o preço da sobrevivência por si só, desprovidas das condições básicas que deveriam ser oferecidas pelo poder público.
Dessa forma, restou à população, sobretudo aos mais pobres, construir pequenas e grandes soluções para suas demandas a partir de seu próprio repertório cultural ou contar com a benemerência dos generosos de plantão, cujo papel, em última instância, atenuou dores, fomes e desconfortos do corpo e do espírito, mas não contribuiu para que se forjasse pelas suas contribuições uma coletividade de sujeitos de direitos.
Nos últimos 25 anos, foi possível verificar no Brasil uma guinada conceitual e jurídica na qual podemos pensar em viver o presente e o futuro com outros parâmetros societários. Nascido na Constituição de 1988, esse ambiente historicamente ainda tenro não poderia ter outra origem senão na lei maior do país.
Faz tempo que a sociedade brasileira anseia pela organização e validação de seu estado democrático de direitos na área social. Mas faz muito pouco tempo que as instâncias de regulação da sociedade civil e do poder público começaram a construção doutrinária da mais ousada experiência latino-americana de avanço civilizatório por meio de uma política pública decisivamente inclusiva: o Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
Falar de assistência social como direito no Brasil tem sido nosso mantra profissional nas últimas décadas. Nunca precisamos de tão fortes argumentos e exemplos para desenhar junto a profissionais, técnicos, usuários e gestores — sejam públicos ou de entidades socioassistenciais — a lógica de uma mudança que passa pela formação acadêmica de alguns, pela compreensão de financiamento e administração de outros e pelo empoderamento social da maioria a quem se destina a política, assim como pela clareza de todos de que este poderá ser um novo país.
Dos trabalhadores envolvidos na operação do sistema espera-se profissionalismo e discernimento ético para substituir uma visão idílica dessa política, sempre associada à eliminação de conflitos e sofrimentos por uma mágica de se fazer um bem temporal. Imprescinde que estes se apropriem das novas condutas que desejamos alcançar, mas não sem penhorar nosso antigo gosto por certezas e garantias de sucesso sempre avalizados pelo calor de nossas primeiras — e às vezes únicas — impressões, desprezando indicadores e outras mensurações fundamentais.
Distante do universo da administração empresarial, cabe ao gestor da assistência social decifrar seu papel de não mais ter de somente refluir verbas públicas, do bazar beneficente e deteriorante de fazer política para pobres e reduzidos a dó. Cabe a ele o ônus-honrado de ajudar a argumentar pelo orçamento obrigatório para a assistência. Ele deve à sociedade um equilíbrio de princípios e ações que transformem prédios e móveis plasmados pela tradição da pena e do compadrio em uma cidadela de direitos chamado Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), ou Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), ou Instituição de Acolhimento, ou casa de longa permanência para idosos, ou o que for mais adequado para aquele que, de sua destreza administrativa, depende o usufruto do usuário da Assistência Social.
Anos-luz da prática do “astuto logrado”, que se locupleta de sua própria condição de usuário para se beneficiar das sobras do Estado. Cabe ao cidadão em situação de vulnerabilidade o gozo de sua condição de destinatário de uma política que lhe deve chegar como catapulta para a projeção de Homo sapiens sapiens, cidadão contemporâneo e copartícipe de suas soluções. Mais que isso, um ser a ser visto como membro de um grupo, integrante de um lócus contraditório, mutante e único, mas, sobretudo, um lugar especial, talvez o único onde qualquer um de nós realmente seja eterno: a família.
Também ao conjunto de atores que habitam os serviços de assistência diariamente em todo o país cabe estudar, participar dos fóruns e ambientes de controle da política. É importante que compreendam, sem as firulas da retórica, o momento único deste tema. Construiremos o SUAS que nossas capacidades de discernimento permitir, na velocidade que imprimirmos ao cotidiano de nossos serviços e de nossas consciências.
A trajetória nacional inédita e singular do SUAS encontra na PAULUS, instituição que atua no assessoramento e garantia de direitos na área social, solo eficaz para quem há mais de 80 anos vêm contribuindo com as diversas etapas desse movimento de proteção social brasileiro.
Nesse particular, a Paulus passou a atuar juntamente com a Revista Filantropia, que nos recebe com a cortesia dos que se sabem importantes na missão de fortalecer a ideia do SUAS, com os desejos e sonhos dos parceiros que somam forças e que são companheiros de esperanças com ações concretas.
A propósito da saga contada por Victor Hugo, aquele período precedeu à belle époque, à art nouveau e ao impressionismo europeu, que fez o mundo mais humano, doce e alegre. Nisso saudamos nossa parceria com a Revista Filantropia com a sede de aprender da PAULUS, para reafirmar o SUAS como uma oportunidade de corrigir erros, promover pessoas e, como servidores da sociedade brasileira, modestamente, ajudarmos a anunciar um Brasil melhor.

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