O acordo da Santa Sé e a qualificação das organizações religiosas que realizam atividades de assistência social como entidades beneficentes
Historicamente, desde a Constituição de 1891, o Brasil é considerado como um Estado laico, o que possibilitou o desenvolvimento de diversos cultos religiosos, os quais, na maioria das vezes, sempre vinculavam seu carisma vocacional com a assistência social, na medida em que tais entidades possuem como missão não apenas o auxílio espiritual aos indivíduos, mas, além disso, a promoção dos mínimos sociais para que essas pessoas tenham condições de se reintegrar à sociedade.
A importância desse trabalho pode ser mais bem traduzida ante a inserção do Princípio da Dignidade Humana, que constituiu um dos pilares para o Estado Democrático, disposto no artigo 1º da Constituição Brasileira com status de Direito Fundamental, bem como por meio da criação de um dispositivo para tratar da assistência social, ora expresso no artigo 206. Além disso, como forma de proteger as organizações religiosas, a Carta Magna, no Título que trata dos direitos e das garantias individuais, aduz pela liberdade no exercício dos cultos religiosos e que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa, e, ainda, no dispositivo que regula a organização do Estado, é expressamente vedado que a União, os Estados e os municípios embaracem seu funcionamento.
Com base nessa importância, de modo a incentivar o desenvolvimento dessas atividades, foi disposto que esses entes possuem direito a imunidades e isenções tributárias, uma vez que sua atuação é de grande valia para construção de uma sociedade mais justa e solidária. Ocorre que, com relação à imunidade dos impostos, o legislador constituinte tratou de fazer uma separação entre os templos de qualquer culto e as entidades de assistência social, sendo em ambos os casos os requisitos necessários dispostos no artigo 14 do Código Tributário Nacional. Todavia, no tocante à isenção das contribuições sociais, os templos de qualquer culto não são contemplados na redação do § 7º do artigo 195 da Constituição Federal, sendo dispostos apenas as entidades beneficentes de assistência social, cujos critérios estão elencados na lei nº 12.101/2009, em especial no artigo 29.
Tendo essas nuances como pano de fundo, diante da notável conexão existente entre as atividades religiosas e aquelas de assistência social, implicaria afirmar que uma pessoa jurídica com natureza de organização religiosa, mas que também desenvolve atividades de assistência social, não poderá usufruir a isenção das contribuições sociais?
Em um passado não tão distante, diversas organizações religiosas que possuíam atividades beneficentes, baseadas no parágrafo único do artigo 1º da Resolução CNAS nº 191, de 10 de novembro de 2005, cujo teor especificava que as entidades religiosas e os templos não se caracterizam como entidades e organizações de assistência social, estavam realizando processos de cisão parcial para segregar o carisma religioso do carisma assistencial, na medida em que, não obstante as duas atividades estarem diretamente conectadas, essa mistura poderia causar grandes vulnerações quanto ao deferimento da qualificação como entidade beneficente e, consequentemente, no direito de usufruir a isenção das contribuições sociais.
Assim, buscando uma tutela do Legislativo, as organizações religiosas, em especial a Igreja Católica, realizou determinadas tratativas para que esse imbróglio fosse resolvido, em especial para que o acordo firmado com o Vaticano em 13 de novembro de 2008 fosse devidamente promulgado e, diante disso, passasse a efetivamente fazer parte do sistema normativo pátrio.
Em ato contínuo, no dia 12 de fevereiro de 2012, as tratativas finalmente surtiram o efeito desejado, pois restou promulgado o acordo entre o governo do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no País, cujo teor, dentre outras matérias, especificou em seu artigo 5º que as pessoas jurídicas eclesiásticas que,
(...) além de fins religiosos, persigam fins de assistência e solidariedade social gozarão de todos os direitos, imunidades, isenções e benefícios atribuídos às entidades com fins de natureza semelhante previstos no ordenamento jurídico, desde que observados os requisitos exigidos pela legislação brasileira.
Evidente que esse normativo pode ser considerado como um grande avanço em comparação com a legislação anterior, haja vista que as organizações religiosas católicas que desenvolvem atividades de assistência e solidariedade social, além de usufruírem a imunidade dos impostos, poderão formalizar pedido de qualificação como entidade beneficente e, após seu peculiar deferimento, fazer jus a isenção das contribuições sociais.
Ressaltamos que esse decreto pode ser considerado a tábua da salvação para essas organizações católicas, pois um processo de cisão parcial envolve muito planejamento e diversas outras burocracias que consomem tempo dos dirigentes, fato esse que, se não for muito bem realizado, pode gerar eventuais questionamentos por parte da administração pública, os quais são aptos a corroborar para um cancelamento do Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social (Cebas) e, até mesmo, a perda da isenção das contribuições sociais.
Conforme mencionado anteriormente, desde a Constituição de 1891 o Brasil é considerado como um Estado laico, tendo, inclusive, garantida, em seu artigo 5º, a liberdade quanto ao exercício dos cultos religiosos. Assim, com relação às demais religiões, como essa situação pode ser resolvida? O mencionado Decreto pode ser aplicado para as organizações religiosas não católicas?
Para resolver esse impasse, partindo para o campo exclusivamente jurídico, deixando de lado qualquer intervenção filosófica, é importante, neste primeiro momento, mencionarmos o Princípio da Legalidade que, ao ser aplicado iniciativa privada, permite que ela faça tudo aquilo que a lei expressamente não proíba. Tendo isso como parâmetro, ao analisarmos a legislação vigente que rege a isenção das contribuições sociais, ora disciplinada no artigo 29 da lei nº 12.101/2009, pode-se notar que em nenhum momento ela veda expressamente que as organizações religiosas que também desenvolvem atividades beneficentes usufruam a isenção das contribuições sociais.
Isto posto, a principal questão que envolve esta matéria reside na necessidade de que, para fins de usufruir esta isenção, a entidade beneficente, na forma do artigo 3º da referida lei, precisa ser certificada como beneficente de assistência social a partir da demonstração de que cumpriu todos os regramentos legais específicos para sua área de atuação. Assim, ao verificar esses requisitos, também não encontramos nenhuma vedação de que essas organizações religiosas que desenvolvem atividades beneficentes possam formalizar o pedido de qualificação e, após o deferimento, fazer jus a isenção das contribuições sociais.
Não obstante a inexistência de qualquer vedação, note-se que o mencionado artigo 3º aduz que a certificação ou a renovação será concedida às pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, com finalidade de prestação de serviços nas áreas de assistência social, saúde ou educação. Traçando um paralelo entre essa informação e o Código Civil, o artigo 44 especifica quem são as pessoas jurídicas de direito privado, sendo assim elencados:
1. as associações;
2. as sociedades;
3. as fundações;
4. as organizações religiosas;
5. os partidos políticos;
6. as empresas individuais de responsabilidade limitada.
Como pode ser observado, temos que, no caso específico das organizações religiosas, elas são consideradas pessoas jurídicas de direito privado e, sendo elas sem fins lucrativos, por prestarem serviços nas áreas de saúde, educação ou assistência social e atenderem todos os demais critérios legais, salutar aduzir que elas poderão ser certificadas como entidades beneficentes e, em ato contínuo, usufruírem a isenção das contribuições sociais.
Ademais, outro fator importante a ser mencionado que corrobora com as considerações acima, está disposto no teor do artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, cujo conteúdo aduz que “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, (...)”, a qual pode ser definida como a utilização da lógica para aplicar uma norma existente no ordenamento jurídico a um caso não previsto, desde que existam semelhanças entre eles.
Vejam que esse princípio pode ser perfeitamente utilizado para o caso das demais organizações religiosas não católicas que almejam obter a qualificação como entidade beneficente dada a inexistência de dispositivo legal específico para elas, combinado com a semelhança entre essas organizações religiosas e aquelas que possuam vocação católica, fato esse que possibilita a aplicação do artigo 5º do Decreto nº 7.107/2010, cujo teor estendeu as imunidades, isenções e benefícios às pessoas jurídicas “que, além de possuírem fins religiosos, persigam fins de assistência e solidariedade social”.
Com base no exposto, as organizações religiosas, dada a sua vocação espiritual, s.m.j., possuem as atividades assistenciais como parte de sua finalidade institucional, as quais, independentemente de sua crença, podem almejar o reconhecimento como entidade beneficente e fazer jus a isenção das contribuições sociais, desde que obedeça aos critérios legais vigentes, ora disciplinados na lei nº 12.101/2009, cujos fundamentos permissivos estão alicerçados na Constituição Federal, na Lei de Introdução ao Código Civil, no Código Civil, na lei nº 12.101/2009 e no Decreto nº 7.107/2010, pois essas atividades corroboram com o interesse do legislador constituinte no fortalecimento da dignidade humana e na consecução dos direitos e garantias fundamentais individuais e coletivas.