Se eu ainda escrevesse por meio da datilografia, provavelmente já teria amassado em pequenas bolinhas dezenas de folhas de papel. O chão da minha sala estaria repleto de flocos disformes, órfãos de árvores assassinadas. Ah, esse tipo de culpa muito retórica incomoda bastante. Talvez não o suficiente para promover hábitos mais sustentáveis na intensidade que o juízo pede. Eu não gosto de ser cúmplice do assassinato de zilhões de árvores. Sei que não é a minha mão que empunha o machado, mas são estas mãos tão minhas que sustentam a indústria do desperdício de papel. Para as próximas edições da revista eu tentarei escrever de próprio punho em papel de padaria reutilizado. Soa mais irônico do que factível. Aliás, gente, como o pão francês está caro, né?
Também não cometo diretamente uma série de outros atentados que causam grande impacto à instituição Vida. Mas não posso alegar ignorância. Seria muito cômodo. Ainda pior, seria muito covarde. Que dilema: saber-se relapso ou saber-se covarde? Ou os dois? Eis a questão que tanto tento acomodar sob o tapete da existência cotidiana, vociferando contra governantes canalhas, transferindo a eles toda a responsabilidade pela esculhambação instituída, que quase sempre tem as minhas digitais a compor o mosaico da cumplicidade. Mas chega desta autoindulgência que cheira à falsa modéstia e vã consciência. Madre Tereza está aqui ao meu lado me lembrando que mais importante que as palavras que saem da minha boca são os gestos das minhas mãos.
Mas do que é mesmo que eu quero tratar neste texto? Ah, sim, a pista são as folhas de papel que seriam amassadas se eu não pudesse digitar, deletar, digitar, deletar, beber café, quase enviar um e-mail para a editora desistindo do texto, beber mais café, digitar, ver um vídeo engraçado no YouTube, ficar com o estômago embrulhado vendo sujos acusando imundos na crença de que o poder os tornará menos crápulas, deletar, digitar, ir para casa, perder o pouco já escrito por esquecer de salvar o arquivo, beber mais café, digitar, deletar, indefinidamente, até receber uma senhora bronca pelo atraso no envio do texto. É neste momento que estou.
O desespero que assombra quem escreve está mais suave porque já sinto que sei o que quero expressar. Aliás, trata-se do tema que vem monopolizando minha atenção quase com exclusividade nos últimos tempos. Algo primário, essencial, premissa da premissa de qualquer premissa relacionada ao comportamento humano. Por que fazemos o que fazemos? Por que deixamos de fazer o que não fazemos? Por causa de quê? Sim, aqui está o que mais cheira à chave da casa: causa. O que tem dentro da casa da causa? Vontade. E fora dela? Justificativas.
Depois que começou a nascer barba branca em minha cara de pau, ando ainda mais de olho em meu repertório de justificativas, que tantas vezes me emprestam um mapa cheio de atalhos sedutores e poltronas confortáveis, que cumprem bem o papel de alimentar a sensação de alívio e progresso. Na prática, contudo, invariavelmente me afastam cada vez mais de casa. Posso dizer que o melhor presente que o passar dos anos e vivências vêm me oferecendo é uma nitidez maior da lente que faz a minha ponte com o mundo. É uma engrenagem híbrida: ponte-lente-ponte. Permite o trânsito do lado de dentro com o de fora, mediado pela possibilidade de se enxergar o que se vê, para além do verniz.
E o que vejo com mais nitidez hoje? No final do dia, o que realmente importa é o que fazemos para elevar a vida, a nossa e de tudo mais que vive. De resto é balela, coisa de procrastinador (prazer, ainda sou eu quase a maior parte do tempo!), que de tanto empurrar a vida com a barriga pode criar uma protuberância abdominal que nos afasta dos outros, impedindo o abraço de casas e causas, ingredientes indispensáveis para a alquimia que cria justiça, nobreza e beleza.
Se nem o Batman conseguiu salvar o mundo sozinho, por que eu haveria de conseguir? Quero menos pretensão e mais tesão pelo gigantesco pequeno valor daquilo que eu posso dar conta de fazer. Além de Madre Tereza, ao meu lado está Fernando Pessoa, sussurrando com ênfase que está farto de semideuses, perguntando-se onde há gente no mundo. Ah, mestre, o mundo é muito grande e eu não tenho tantas milhas assim para procurar além-mar. Mas prometo que tentarei continuar a investigação no espelho, com cada vez menos pudor e com o que ainda me resta de coragem, irrigando ainda que a conta-gotas a vontade de encontrar a gentidade nutritiva que me cabe neste quinhão de mundo por onde circulo.
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