A rua tá nervosa hoje?

Por: Gabriella Fanelli
11 Setembro 2014 - 01h33

Não que minha mãe fosse alguém arrogante, mas foi com ela que aprendi a ignorar quem vive na rua. Ora por medo, ora por asco, não importava. A regra era desviar deles, fugir, ou, na pior das hipóteses, fingir que não existiam. Acho que todo mundo aprende a tratar a população em situação de rua como seres desprezíveis e perigosos. Eu mesmo só comecei a pensar diferente quando a rua deixou de ser passagem e virou lugar de estada. Aí eu é que fui ficando invisível.
Aprendi que a rua tem suas regras não escritas. Regras duras e implacáveis. Se não reparar no chão, vai cair nas armadilhas urbanas dos pisos irregulares. Quando não se presta atenção nos que passam, pode-se levar um nocaute por esbarrão. Se tiver algo de valor, pode ser surrupiado em segundos, sem tempo de reação. Atravessá-la sem reparar nos dois sentidos do tráfego, pode e será sentença de morte.
Numa casa tudo é mais fácil. Mesmo quando é ruim, você ainda é o centro de um mundo. Lá, todos reparavam em mim, até eu. Quando é assim, com tudo notando você, é fácil esquecer que tem outras coisas ao seu redor. Esse tipo de existência pública nas ruas parece ser inversamente importante pela transfiguração da ideia de caos que a rua tem. Se for verdade que a via é de todos, também é minha, mas essa propriedade, quanto mais exercida, mais excomungada de direitos, é pelos que de direito falam e defendem a república.
Por isso constato como aqui na rua é diferente. É tanta gente te ignorando que você começa a duvidar da própria existência. Eu me sinto menos que uma sombra. As sombras engrandecem, dão graça e vida. Eu, muitas vezes, sinto-me como um chiclete incrustado na calçada, que ninguém se atreve a passar perto pra não correr o risco de estragar o sapato.
Muitas vezes, na falta de ter com o que me ocupar, eu presto atenção no pessoal que anda por aqui. De uns tempos para cá reparei que, além de me distrair, eu aca-
bo aprendendo.
Eu costumo dormir perto de uma estação do metrô, e vejo que a maioria das pessoas que passa por ali já perdeu a fé em ter um bom dia e está com a cara fechada antes mesmo das oito da manhã. Parece que o dia já cheira a estragado. É uma expressão engraçada pra quem tem aonde ir.
Têm gente que só parece precisar ouvir um “bom dia” de alguém, mas se eu me arrisco a dizer, acabam me olhando feio.
Teve uma vez que na porta de um mercado eu notei duas velhinhas conversando, reclamando em bom e alto som do estado ruim das frutas. Será que elas sabem pelo que a fruta passa? Primeiro derrubam ela da árvore, jogam no chão, do chão a colocam na caixa, que jogam de qualquer jeito no caminhão, que vem balançando, quando chega jogam no chão outra vez e depois despejam sem cuidado na bancada. E você pensa que acaba por aí? Não, alguém vem e aperta, cutuca a fruta e reclama que ela deveria estar assim ou assado e a joga de lado pra dali a pouco outro alguém fazer a mesma coisa. Depois disso tudo, como é que ela vai
ser doce?
Tem uma garota bonitinha que, mesmo sem saber, transforma meu dia. Acho que ela nem sabe que eu existo, mas quando dá bom dia para o jornaleiro, ele fica um cara bem mais simpático. Conversa, e às vezes até me dá algo para ler. Mas, se a moça teve um dia ruim, passa sem nem falar com o coitado da banca, e aí o dia vai ladeira abaixo, porque ele, sem seu “bom dia”, costuma ficar azedo e me expulsa de lá.
Se assim acontece, a minha próxima parada é na pracinha ali ao lado. Evito ir às quartas, não quero encontrar com a policial metida a besta que tira esse dia da semana, toda semana, todo mês, durante o ano todo, para fazer truculência com a gente. Tem gente que parece ser treinada para multiplicar os problemas dos outros, e só consegue olhar o lado ruim de tudo. Se for investida de alguma autoridade então, aí que se realiza tripudiando os mais vulneráveis. Isso pode? Nesse mundo da rua parece poder.
Nesta mesma praça, nos outros dias, a pirralhada que estuda ali perto cabula aula para conversar comigo. É errado eles faltarem, mas me faz bem, já que quando eu me esqueço de mim, eles lembram. Eles veem nas minhas histórias uma graça que eu mesmo não vejo. As brigas que tenho, as pessoas que encontro, as baboseiras que escuto, e eles prestam atenção como se eu estivesse dando uma aula.
Um dos garotos me diz que eu faço com que todas as histórias diferentes que eu conto pareçam ser uma só. E aí eu percebo que, mesmo sendo um monte de personagens e lugares diferentes, o palco é um só. As histórias parecem estranhas umas às outras, mas a trama, no fim, é a mesma. É que nem a gente; tem braço, perna, sangue, coração, estômago, cérebro. Todo mundo tem dias bons e dias ruins.
Sendo eles bons ou ruins, eu sempre passo a noite no mesmo lugar. Tem um pessoal que conheço ali. Costumamos nos reunir para comer juntos o que conseguimos desde o nascer até o pôr do sol e então falamos sobre o que aconteceu com a gente naquele dia. Somos uma família, ali é nossa casa. Percebo que, como a rua não tem rosto, ela usa o nosso para se expressar. Basta que eu fale ou sorria menos pra que alguém pergunte: a rua tá nervosa hoje?
A resposta não está em nós. Talvez esteja na poluição, no trânsito ou “nos corre” que alguns estão fazendo para sobreviver. Pode estar inclusive na sinaleira quebrada, um buraco novo no asfalto, ou na fila da lotérica. Nem podemos descartar que o nervoso da rua não esteja no desperdício que aquela respeitável senhora provoca ao lavar a calçada com sua mangueira d’água em profusão, espalhando as folhas no meio fio.
Mas desconfio que esse nervoso da rua está mesmo, tantas vezes, na falta do bom dia daquela menina para o jornaleiro. Quando a gente fala a linguagem dos afetos, tudo fica mais calmo, terno e sereno. Menos nervoso.
Repara só! Bom dia pra você e sua rua.

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