Estrutura mínima em tempos de pandemia

Por: Erika Spalding, Camila Corazza Borenstein
29 Junho 2020 - 00h00

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Diversas iniciativas sociais estão surgindo informalmente para combater os efeitos da pandemia de Covid-19, demonstrando que há uma grande movimentação da sociedade para ajudar as pessoas em situação mais vulnerável. Sabe-se que as consequências da pandemia serão enormes, o que tornará essas ações ainda mais necessárias por um longo período.

Entretanto, sem estruturação jurídica, as iniciativas sociais podem acabar após a pandemia. Assim, o objetivo deste artigo é trazer aos grupos informais, líderes de movimentos sociais, braços de responsabilidade social de empresas e outros interessados, orientações jurídicas preliminares sobre a constituição de uma instituição do Terceiro Setor (também denominada “Organização da Sociedade Civil – OSC”, nos termos da Lei n˚ 13.019/2014).

Há diversas vantagens em se constituir uma organização do Terceiro Setor, que podem variar conforme o caso. De forma geral, destacamos como ganhos a composição de uma governança apropriada para a consecução do objeto social, a profissionalização das atividades, a garantia de maior transparência e credibilidade junto aos parceiros, doadores e sociedade em geral, e a adequada canalização dos recursos financeiros. Também pode possibilitar o acesso a incentivos fiscais, imunidade e isenções tributárias, parcerias com o poder público, patrocínios de empresas e participação em editais de fomento, ampliando sobremaneira as oportunidades para captação de recursos.

O primeiro passo para a constituição é a escolha da natureza jurídica da organização. À luz do ordenamento jurídico brasileiro, as formas mais comuns de pessoas jurídicas sem fins lucrativos são as associações e as fundações. Serão abordados, a seguir, os principais traços distintivos entre elas, ao mesmo tempo em que serão apresentadas algumas orientações iniciais.

As associações têm como característica fundamental o elemento pessoal, consubstanciado por meio da reunião de pessoas (os “associados”) para fins distintos do lucro. As fundações também não possuem finalidade lucrativa, mas o elemento central é o patrimônio. Uma fundação é um acervo de bens livres que recebe da lei a capacidade jurídica para realizar as finalidades pretendidas pelo seu instituidor, em atenção ao seu estatuto.

A criação de uma associação independe de autorização do Poder Público, e sua existência inicia-se, no plano legal, com a inscrição de seus atos constitutivos (ata de constituição com a aprovação do Estatuto Social e eleição dos dirigentes) no Cartório de Registro de Pessoas Jurídicas da sede da organização. A constituição de uma fundação, por sua vez, é feita por escritura pública ou testamento, devendo o instrumento de constituição, após aprovado pelo Ministério Público, ser registrado no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, momento em que começará a existência legal da fundação.

Em relação aos objetivos, enquanto nas associações eles são definidos pelos próprios associados e podem sofrer alterações, nas fundações são determinados pelos instituidores, e têm o condão de reger a fundação por toda a sua existência.

A união de pessoas sob a forma de associação presta-se aos mais diversos objetivos (por exemplo, educacionais, culturais e assistenciais). É certo, por outro lado, que algumas associações terão um caráter essencialmente social ou de interesse público, enquanto em outras, prevalecerá primordialmente o interesse dos próprios associados.

Com relação às finalidades possíveis para a instituição de fundações, o artigo 62, parágrafo único do Código Civil, menciona: (i) assistência social; (ii) cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico; (iii) educação; (iv) saúde; (v) segurança alimentar e nutricional; (iv) defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável; (vii) pesquisa científica, desenvolvimento de tecnologias alternativas, modernização de sistemas de gestão, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos; (viii) promoção da ética, da cidadania, da democracia e dos direitos humanos; e (ix) atividades religiosas.

De toda maneira, está claro que tal dispositivo não se presta a afixar um rol taxativo e nem limitativo acerca das atividades fundacionais, sendo cabível interpretação mais extensiva, desde que, por óbvio, a organização seja sem fins lucrativos e atenda ao interesse coletivo, o que pode abarcar diversas outras atividades - entre elas o esporte, a moradia, a gestão de fundos patrimoniais, e a promoção do voluntariado.

Quanto ao elemento patrimonial, não existe obrigatoriedade de dotação inicial para constituição das associações. Já para as fundações, o patrimônio é condição indispensável e deve ser suficiente para o cumprimento das finalidades institucionais inscritas no estatuto da organização. Poderão lhes ser dotados quaisquer tipos de bens, o que inclui tanto imóveis quanto bens móveis, desde que “livres”. Ou seja, desde não estejam gravados com qualquer tipo de ônus e cuja alienação não prejudique terceiros.

A fiscalização nas associações é feita pelos próprios associados, enquanto nas fundações existe o velamento do Ministério Público, ao qual se prestam contas.

Quanto à administração, enquanto nas associações predomina a vontade dos associados, nas fundações a forma de gestão é estabelecida pelos instituidores, cabendo aos órgãos deliberativos e administrativos, de acordo com as competências previamente estabelecidas nos estatutos, buscar satisfazê-la.

Ainda com relação à governança, normalmente os órgãos estabelecidos nos estatutos são: assembleia geral para associações ou conselho curador para fundações, diretoria e conselho fiscal. É possível, ainda, a existência de outros órgãos, como conselhos técnicos e consultivos.

Com relação à elaboração do estatuto, em todos os casos, recomenda-se que seja claro, preciso e completo, especialmente quanto à construção do objeto e das regras de funcionamento, sendo aconselhável a previsão expressa, dentre outros, dos seguintes pontos: (i) denominação, fins, sede e tempo de duração; (ii) fontes de recursos para sua manutenção; (iii) condições para a alteração das disposições estatutárias e para a dissolução ou extinção da organização; (iv) forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas; (v) representação da organização em juízo e fora dele; (vi) as responsabilidades dos dirigentes e membros.

Além dos pontos acima, os estatutos das associações também devem dispor sobre os requisitos para a admissão, demissão e exclusão de associados, seus direitos e deveres, sobre as categorias dos associados, entre outros.

No caso das fundações, também é comum que tratem do patrimônio com o qual o instituidor irá dotar a fundação e da fiscalização pelo Ministério Público. A elaboração do estatuto requer cautela, pois eventual reforma das disposições estatutárias implica a deliberação de, no mínimo, dois terços dos competentes para gerir e representar a fundação, sendo necessária aprovação do Ministério Público. Além do que, não são admitidas alterações que contrariem ou desvirtuem a finalidade inicial da fundação.

A definição de determinados pontos no estatuto também é condição determinante para que a organização possa pleitear títulos, fazer jus a incentivos ou benefícios fiscais ou, ainda, para que seja possível a celebração de parcerias com o poder público.

É altamente recomendável que o texto estatutário atenda aos preceitos da Lei nº 13.019/2014 (“Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil – MROSC”), incluindo previsões relativas à transparência, destinação de recursos, não vinculação a campanhas político-partidárias, dentre outras. Com isso, a organização terá o enquadramento na definição de OSC e poderá gozar dos benefícios específicos da lei, como a fruição do incentivo fiscal de que trata seu artigo 84-B, que permite receber doações dedutíveis até o limite de 2% do lucro operacional da pessoa jurídica doadora (tributada pelo lucro real).

Como se vê, há diversos requisitos a serem cumpridos, bem como aspectos particulares de cada iniciativa social a serem considerados, para a adequada constituição de uma pessoa jurídica sem fins lucrativos. Entretanto, superado este momento inicial de criação da associação ou fundação, certamente a estruturação jurídica contribuirá fortemente para a continuidade, o fortalecimento e a viabilidade econômica de projetos sociais surgidos em virtude da pandemia.

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