Captar recursos não é uma tarefa fácil. Suspeite de quem disser o contrário. São muitos os desafios encontrados pelas organizações da sociedade civil para buscar os recursos necessários para a realização de suas ações e projetos, entre eles a falta de recursos em caixa para contratar profissionais captadores, investimentos em comunicação, produção de materiais, e acesso a grandes empresas e doadores. Neste cenário, os incentivos fiscais para projetos sociais, concedidos pelo governo federal por meio de Renúncia Fiscal, são uma das alternativas que as ONGs podem utilizar para facilitar a captação de recursos para seus projetos. Mas será mesmo verdade essa afirmativa?
O uso de incentivos fiscais para financiamento de projetos sociais no Brasil já é amplamente conhecido. Nove por cento do total de imposto de renda que uma empresa paga anualmente pode ser destinado ao financiamento de projetos culturais, esportivos e sociais. Para a pessoa física, esse percentual é de 8%. O montante desses recursos sob o formato de renúncia fiscal é de R$ 3,9 bilhões por ano no país. Entretanto, nem todos os projetos sociais conseguem efetivar a captação de recursos; apenas 51,72% deles obtêm êxito. Utilizamos 60% do total concedido de Renúncia Fiscal anualmente; isso significa que a cada ano perdemos R$ 1,56 bilhão que poderiam financiar projetos culturais, esportivos, de crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, ações de combate ao câncer, entre outros, em muitas comunidades pelo Brasil afora.
Tais números refletem, principalmente, que somos muito ruins em captação de recursos e que poderíamos ser melhores. Mas antes de atribuir toda a culpa a nós mesmos, é importante refletir sobre o contexto mais amplo que envolve a captação de recursos via incentivos fiscais.
Incentivo fiscal | Empresas de lucro real (9%) | Pessoas físicas (8%) |
Lei Rouanet e Lei do Audiovisual | 4% | 6% |
Lei de Incentivo ao Esporte | 1% | |
Fundo da Infância e Adolescência (FIA) | 1% | |
Fundo Nacional do Idoso | 1% | |
Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde (Pronas) | 1% | 1% |
Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica (Pronon) | 1% | 1% |
Empresas e pessoas físicas podem destinar seu imposto de renda para projetos incentivados. Porém, nem todas: apenas as empresas tributadas por lucro real (e que estiverem com todos seus impostos em dia) podem incentivar projetos desse tipo. No Brasil, cerca de 3,4% das empresas têm esse perfil (710 mil empresas), a maioria de grande porte ou do setor financeiro. O número não parece pouco, entretanto, quando contabilizamos o volume daquelas empresas que, de fato, utilizam os incentivos fiscais e têm o investimento social privado como prática: chegamos a 0,49%, ou seja, cerca de 3.500 empresas brasileiras. Sob outro olhar, podemos dizer que, infelizmente, 99,51% das empresas brasileiras que poderiam utilizar incentivos fiscais não utilizam. Para os doadores pessoa física, os números não são tão diferentes. Somos 6,9 milhões de brasileiros empregados e com renda dentro das faixas de recolhimento de imposto de renda, porém, somente 0,19% já realizaram doações incentivadas.
Segundo estatísticas dos últimos 10 anos da Lei Rouanet (SalicNet), cerca de 6.379 projetos são aprovados anualmente e autorizados para captação. Os projetos levam, em média, 30 a 120 dias para serem analisados e aprovados. Porém, nem todos os incentivos fiscais funcionam assim. Dentre eles, o Ministério da Cultura é o mais organizado, que dispõe de equipe capacitada, oferecendo atendimento eficaz aos proponentes e que faz a melhor gestão. Em seguida, temos o Ministério do Esporte, que também conta com equipe própria. Entretanto, o volume de projetos recebidos por este órgão é muito maior que o número de técnicos disponíveis, fazendo com que um projeto tramite em análise entre 6 meses a 2 anos até ser aprovado e poder iniciar sua captação. Já os fundos da criança e do adolescente e do idoso apresentam uma complexidade muito maior, pois sua gestão acontece em âmbito municipal e estadual, por meio de seus conselhos, os quais podem deliberar as regras relacionadas ao recebimento e análise dos projetos, ainda que atualmente sob a luz do novo Marco Regulatório. Poucos são os conselhos constituídos corretamente e com capacidade de gestão para fazer esses incentivos fiscais funcionarem bem. Por último, o Ministério da Saúde, que de forma ineficaz faz a gestão do Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica (Pronon) e Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde (Pronas). Os projetos dependem de um chamamento público anual e demoram muito tempo para serem analisados. Os proponentes não encontram atendimento junto aos técnicos do Ministério e ficam perdidos em relação aos procedimentos. Para piorar, os projetos são aprovados e publicados no final do ano, deixando as empresas enlouquecidas pela falta de tempo hábil para viabilizar as doações.
Depois de aprovados e publicados em Diário Oficial, os projetos estão autorizados a buscar recursos junto a empresas e pessoas físicas. Inicia-se uma fase nova e diferente, pois o formato do projeto aprovado junto aos órgãos públicos não será o mesmo formato a ser encaminhado para empresas e doadores pessoas físicas. Torna-se necessário desenvolver uma verdadeira campanha de comunicação para "vender" o projeto. As organizações devem investir em uma apresentação gráfica e contar com profissionais de captação. Além disso, o acesso às empresas e aos doadores não é nada fácil. Grande parte das empresas que utiliza incentivos fiscais são de grande porte e não dispõem de canais de atendimento específico para essa finalidade. Não raro encontramos um e-mail do tipo [email protected] ou existe um telefone que nem o Google encontra.
Pontos importantes que devem ser lembrados |
• As ONGs não têm acesso aos investidores sociais, que, geralmente, são empresas de grande porte. |
• Os investidores sociais são muito assediados pelas ONGs, que desconhecem suas políticas de patrocínio. |
• Cada empresa apresenta procedimento próprio de análise e seleção de projetos. |
• Os investidores sociais recebem inúmeros projetos, em diversos formatos não padronizados, de difícil seleção, análise e escolha. |
• ONGs e investidores sociais usam linguagens diferentes para se comunicar – muitas vezes incompreensíveis um ao outro. |
• As empresas têm alto custo para operar os incentivos fiscais (recursos humanos, estrutura, tecnologia e comunicação). |
• Ao investir em projetos, as empresas perdem o controle sobre o destino do recurso e o acompanhamento dos resultados. |
• Os proponentes geralmente não retornam aos investidores com resultados e prestação de contas. |
A grande questão do insucesso, entretanto, é de cunho estratégico. Falta aos captadores e às ONGs um pouco de empatia em relação aos doadores que pretendem conquistar. A maioria não consegue enxergar o contexto dos incentivos fiscais sob a ótica do doador, especialmente das empresas, que detém os recursos tão desejados. Dentre essas poucas 0,49% que doam seus impostos, a maioria se organiza para isso e estabelece internamente um processo para receber, analisar e incentivar projetos, comunicando essas diretrizes sob o formato de políticas de patrocínio ou políticas de investimento social privado. Elas escolhem (sim, elas podem escolher) os tipos de projetos que preferem apoiar, a localidade, tipo de público e qualquer outro critério que desejarem. Muitas lançam editais de chamamento de projetos e têm seus formulários próprios e sistemas de informação. Os critérios orientam suas ações e o que elas mais desejam é poder gerar resultados mensuráveis, que possam traduzir o quanto elas contribuem para a transformação social do país e de seus públicos de interesse. Acontece que dificilmente algum captador ou ONG sabe disso, e acaba assediando de forma inapropriada as empresas com seus projetos. O resultado é a criação de barreiras de acesso e de um problema de comunicação, em que cada parte fala um idioma diferente.
Quando falamos de incentivos fiscais, não podemos esquecer que eles estão relacionados ao imposto de renda. Assim, é grande a quantidade de empresas que direciona esse assunto para o último trimestre do ano, sendo esse o período mais favorável para a captação de recursos incentivados. E quando falamos em último trimestre, entendam "setembro, outubro e novembro", pois dezembro é apenas o mês de definir os incentivos e fazer os repasses dos valores aos projetos.
Aqueles projetos que conseguem aproveitar esse período para serem encaminhados e analisados, possuem grandes chances de sucesso (caso atendam às políticas de patrocínio das empresas). Aos que não conseguem, provavelmente terão que entrar novamente em um ciclo anual de captação, aguardando o próximo final de ano. É claro que existem exceções, mas podemos dizer que essa é uma regra de sucesso para captação de recursos incentivados. As empresas escolhem com bastante antecedência o que apoiarão e realizarão no ano seguinte.
Por fim, é preciso dizer que para as empresas essa também não é uma tarefa fácil. Investir em projetos sociais incentivados demanda tempo, conhecimento para operar com segurança, recursos humanos (capacitados), estrutura, esforços de comunicação e investimento financeiro. Muitas delas se constituem sob o formato de fundações ou institutos e também desejam operar projetos (não somente patrociná-los). Não é à toa que muitas desistem e não empreendem esse tipo de ação que foge de seu core business. Relacionar-se com as comunidades e com seu público externo exige dedicação e diálogo, exige falar uma língua que não é de sua natureza. E, para ser ainda "pior", não raro destinam recursos para ONGs e projetos com os quais nunca mais terão contato, que dificilmente conseguirão medir os impactos, pois poucas são aquelas que valorizam a qualidade da gestão e o compromisso com a prestação de contas.
Por todos esses motivos é tão difícil captar recursos incentivados. Porém, não é impossível. É preciso transformar as dificuldades em desafios e focar o olhar de maneira estratégica no doador que queremos conquistar.
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