Após 33 anos à frente da Microsoft e com uma fortuna pessoal estimada em US$ 58 bilhões – a terceira maior do mundo, segundo ranking da revista Forbes –, o empresário norte-americano Bill Gates, 52 anos, deixou em 27 de junho passado a direção da maior companhia de softwares do mundo. A empresa continuará em plena atividade, sob comando do executivo-chefe Steve Ballmer, do chefe de estratégia e pesquisa Craig Mundie, e do chefe de arquitetura de softwares, Ray Ozzie. Entretanto, esse afastamento não pode ser considerado exatamente uma aposentadoria. Por ser o maior acionista da Microsoft, Gates continuará a presidir o conselho da empresa e trabalhará em apenas alguns projetos especiais – o que lhe custará um dia de trabalho por semana. A partir de agora, ele dedicará mais tempo aos projetos e ações desenvolvidos pela Bill & Melinda Gates Foundation, criada em 2000 por ele e sua esposa, Melinda French Gates. “A idéia de ampliar minha atuação junto à fundação surgiu em 2004 e foi formalizada em junho de 2006, quando anunciei um período de transição de dois anos até que eu, efetivamente, deixasse o cargo de presidente”, disse o empresário. Conforme vem afirmando à imprensa internacional, esse é o início de uma nossa fase – Bill Gates 2.0. Em entrevista à Revista Filantropia, Gates fala de seu envolvimento com a área social, das atividades de sua fundação e de capitalismo criativo.
______________________________________________________
Revista Filantropia: Quando começou seu envolvimento com a área social?
Bill Gates: Comecei efetivamente meus trabalhos filantrópicos em 1994, quando criei a William H. Gates Foundation, focada na questão da saúde. Três anos depois, minha esposa Melinda e eu criamos a Gates Library Foundation, que visava disponibilizar nas bibliotecas públicas dos EUA computadores com acesso gratuito à internet. Mas, em 2000, no intuito de ampliar a eficiência e o alcance das ações realizadas pelas duas fundações, optamos por unificá-las, dando origem à Bill & Melinda Gates Foundation.
Filantropia: A partir de julho de 2008, com seu afastamento da Microsoft, você dedicará a maior parte de seu tempo à fundação. O que o motivou essa decisão?
BG: Notei que existem algumas pessoas que são afortunadas, que chegam a determinado momento da vida no qual podem parar e refletir sobre seu trabalho e dizer: “Meu trabalho é ótimo. É divertido, excitante e útil. Eu poderia fazer isto para sempre”. Mas com o passar do tempo, também somos impulsionados a nos questionar: “Além de trabalhar, o que eu fiz até agora?”, “O que mais eu posso fazer?”.
Há dez, 20, 30 anos, eu estava totalmente focado em como os softwares poderiam mudar o mundo. Acreditava que os avanços da tecnologia poderiam ser a solução de muitos problemas – e eles realmente foram, para milhões de pessoas em todo o mundo. Mas esses avanços apenas conseguem mudar as vidas dos indivíduos que podem pagar por eles. Há milhões de pessoas que carecem de grandes inovações tecnológicas e tantas outras necessidades básicas, mas não têm como expressá-las em meios que realmente importam aos mercados. E, assim, continuam passando tais necessidades.
Se pretendemos proporcionar uma séria mudança na vida dessas pessoas e ajudá-las a viver em melhores condições, precisaremos de um outro nível de inovação, não apenas tecnológico. Careceremos de inovações em todo o sistema.
Filantropia: E quais seriam essas inovações?
BG: Os grandes avanços ocorridos nos últimos tempos têm freqüentemente agravado as injustiças sociais. Os menos carentes têm mais acesso aos benefícios, enquanto os mais necessitados têm menos. Há aproximadamente um bilhão de pessoas em todo o mundo que não têm comida suficiente, não têm água limpa para beber, não têm eletricidade. Doenças como malária, que matam anualmente mais de um milhão de pessoas, conseguem menos atenção do que medicamentos que auxiliam no combate à calvície, por exemplo.
Para mudar esse sistema, cremos na importância do trabalho em conjunto com parceiros. Todas as áreas às quais nos propusemos a analisar e a melhorar requerem o talento e os recursos de muitas pessoas e organizações. E, para conseguirmos uma troca duradoura, capaz de mudar esse sistema e gerar novas idéias e comportamentos, devemos colaborar ativamente com governos, empresas e organizações sem fins lucrativos.
Um exemplo disso é o trabalho que fazemos em escolas secundárias dos EUA, que envolve dezenas de parceiros, desde organizações ligadas às comunidades locais até encarregados pela elaboração de políticas nacionais. Para melhorar a educação é requerido esforço conjunto de pais, professores, administradores escolares, diversas entidades voltadas à reforma do ensino e líderes do governo em todos os níveis.
Esse é o tipo de inovação que precisamos que aconteça para que os projetos filantrópicos e a missão de nossa fundação, bem como de todas as demais entidades sérias, sejam realmente concretizados. O desafio é projetar um sistema no qual os incentivos do mercado, incluindo lucros e reconhecimento, conduzam a mudança. Costumo chamar esse novo sistema de capitalismo criativo.
Filantropia: O que seria exatamente “capitalismo criativo”?
BG: O capitalismo criativo é, basicamente, a aproximação e a unificação do trabalho do Primeiro, Segundo e Terceiro Setor, além da sociedade, de modo a proporcionar benefícios a todos os envolvidos, seja lucro financeiro ou reconhecimento, contribuindo para a redução das injustiças no mundo. Esse tipo de capitalismo é um mecanismo híbrido do interesse pessoal e do interesse coletivo, que se utiliza da fortuna de terceiros e a amarra aos nossos interesses (da fundação), permitindo que ambos obtenham alguma vantagem.
Filantropia: Esse sistema chegou a ser aplicado na Microsoft?
BG: Com certeza. Meu modo de pensar sobre esse assunto foi influenciado por inúmeras experiências, incluindo nosso trabalho na companhia. Nas últimas duas décadas, a Microsoft utilizou a filantropia corporativa como meio de levar a tecnologia às pessoas que não tinham acesso a ela, e doou mais de US$ 3 bilhões em dinheiro e software. Mas, mais do que simplesmente doar, nós também ensinamos as pessoas a utilizarem essa tecnologia disponível para criar soluções, como ocorre, por exemplo, em nosso laboratório na Índia.
Lá, um grupo de profissionais altamente gabaritados trabalha constantemente no desenvolvimento de novos produtos, tecnologias e soluções de negócios. Um exemplo desse trabalho é a criação de um programa voltado a pessoas analfabetas ou semi-analfabetas, que permite o acesso quase instantâneo do usuário ao computador, bastando um treinamento ou auxílio mínimo.
Filantropia: Quais os passos adotados pela fundação ao iniciar uma ação ou projeto?
BG: Basicamente, seguimos cinco passos. Inicialmente, delimitamos o problema que pretendemos trabalhar, tendo por base uma série de estudos que compravam sua importância e a necessidade de uma ação. Em seguida, desenvolvemos uma estratégia de atuação, que inclui os riscos envolvidos na ação, orçamento, viabilidade em longo prazo, resultados pretendidos e, principalmente, o impacto que essa ação acarretará na vida dos beneficiados.
O terceiro passo é fazer uma reserva financeira consistente, que contribuirá para a constante manutenção das atividades. Após colocar o projeto em prática, é essencial que os resultados sejam mensurados e, posteriormente, se necessário, que esses resultados, bem como os objetivos do projeto em questão, sejam avaliados e ajustados a atual situação.
Filantropia: Que valores norteiam as ações da Bill & Melinda Gates Foundation?
BG: A cada dia morrem mais de mil crianças por não terem recebido uma dose da vacina contra o sarampo, que custa US$ 0,15. Quase 3 bilhões de pessoas no mundo sobrevivem com menos de US$ 2 ao dia. Nos Estados Unidos, apenas um terço dos estudantes que concluem o 9º ano conseguem se formar com os conhecimentos essenciais para obter sucesso em uma faculdade e no mercado de trabalho, sendo boa parte deles de origem hispânica ou afro-americana.
Nossa fundação e nossos associados estão tentando resolver estes problemas, porque cremos que o valor da vida humana é o mesmo em todos os cantos do planeta, tanto em países ricos, que possuem serviços de saúde de alta qualidade, quanto em países pobres, com assistência médica quase inexistente; em bairros com escolas secundárias novas e reluzentes ou em comunidades com escassos recursos financeiros, onde a maioria das crianças abandona os estudos muito cedo para ajudar em casa.
A Bill & Melinda Gates Foundation é guiada pelos seguintes princípios básicos: em primeiro lugar, nos concentramos em um pequeno número de lugares para que possamos compreender quais são as melhores iniciativas e como causar o maior impacto positivo possível. Para elegermos tais áreas nos perguntamos: “Que problemas afetam a maioria das pessoas e que problemas não têm recebido a devida atenção?”.
Na área de saúde, nos ocupamos das enfermidades e distúrbios de saúde que têm a maior incidência e taxa de mortalidade, e que recebem atenção e recursos ínfimos, como é o caso da tuberculose e da malária, que foram erradicadas dos países ricos, mas ainda consomem inúmeras vidas em países em desenvolvimento; e a Aids, que provoca cinco milhões de novas infecções anualmente, sendo a maioria delas em países pobres.
Acreditamos também que a ciência e a tecnologia têm o poder de melhorar a vida humana. Nos últimos anos, temos obtido consideráveis avanços em todos os campos, desde a biologia até a tecnologia da informação, e todos têm o direito de se beneficiar com essas inovações. Nosso propósito é contribuir para que a ciência e a tecnologia se apliquem cada vez mais aos problemas dos mais necessitados.
Além disso, temos consciência de que se costuma esperar muito daqueles que têm recebido mais. Nós temos nos beneficiado de excelentes escolas, serviços de saúde muito bons e um sistema econômico vigoroso. Por isso, sentimos a enorme responsabilidade e necessidade de devolver parte desses benefícios à sociedade.
Filantropia: Quais as principais áreas de atuação da organização?
BG: A ONG possui três braços de trabalho: Programa de Desenvolvimento Global (Global Development Program), Programa de Saúde Global (Global Health Program), e Programa Estados Unidos (United States Program).
O primeiro é desenvolvido a partir de parcerias, no intuito de gerar oportunidades para que as pessoas possam sair de situações de pobreza e fome. Já o Saúde Global enfoca três áreas específicas: descobrir soluções para problemas de saúde que causam as maiores injustiças; desenvolver tais soluções dentro de produtos que possam ter grande impacto sobre a população; e certificar-se de que eles estão sendo devidamente entregues às pessoas mais necessitadas.
E o Programa Estados Unidos objetiva aumentar significativamente o número de estudantes que se formam no colegial (ensino médio, no Brasil) com as habilidades necessárias para que estes sejam bem-sucedidos tanto na faculdade quanto no mercado de trabalho; expandir o acesso à informação por meio da tecnologia em bibliotecas públicas de comunidades menos favorecidas; e melhorar as condições de vida de crianças e jovens em situação de risco, além de seus familiares, em Washington (DC) e Greater Portland, no estado de Oregon.
Filantropia: Para a fundação, o que é mais importante: os recursos financeiros que você destina às pesquisas e ações ou suas habilidades como administrador?
BG: Sem dúvida nenhuma, minha habilidade administrativa. É evidente que uma entidade precisa de recursos financeiros para funcionar; e isso nós temos. Mas, no final, o que verdadeiramente importa é sermos reconhecidos por nosso trabalho, por nossos esforços no caso de encontrarmos uma vacina para a malária ou para a Aids, por exemplo, e pela quantidade de vidas que podemos salvar com isso, e não pelos US$ 30 bilhões que destinei à caridade.
Filantropia: Como a administração de uma multinacional, como a Microsoft, se diferencia da direção de uma fundação de cunho social, como a Bill & Melinda Gates, considerada a maior instituição filantrópica do mundo?
BG: Na verdade, não existe muita diferença. O essencial é reunir um grupo de pessoas inteligentes, selecionadas a dedos. Com boa liderança e gerenciamento correto, o grupo poderá se tornar bem-sucedido em suas atividades. Nesse caso, a fundação deverá ser compreendida e administrada como uma empresa convencional.
Filantropia: Uma das prioridades da fundação é a questão da saúde, em especial a erradicação da malária e a descoberta de uma vacina contra a Aids. Quais as reais chances de se alcançar esses objetivos?
BG: Essas doenças matam principalmente pessoas de países pobres, onde os habitantes não têm condições de adquirir medicamentos. As empresas, que trabalham sob as máximas capitalistas, não têm interesse nesses mercados, pois, se não há recursos financeiros para a compra de remédios, não há razão para se investir nessas regiões. Mas, ao mesmo tempo, o desenvolvimento técnico obtido no campo da medicina foi grande o bastante para poder ajudar no combate a tais doenças. Como é possível que se consiga decifrar o genoma e não se encontre uma vacina para a malária ou para a Aids?
A Aids ainda é a questão mais grave. Mas, por ser otimista, espero eliminar diversas doenças da minha lista de afazeres ou, pelo menos, conseguir na próxima década alguns importantes resultados capazes de salvar muitas vidas.
Filantropia: Desde o início de sua atuação no campo social, certamente você já presenciou diversas situações extremas em países pobres. Há alguma que o tenha marcado mais?
BG: Várias situações me marcaram. Mas, há algum tempo, fiquei três dias na Nigéria a fim de examinar as condições precárias dos agricultores locais. Essa viagem me fez enxergar muita coisa que, até então, eu não enxergava. Costumamos nos esquecer que, dos 6 bilhões de habitantes do planeta, 4 bilhões vivem em situação de risco, que fazem os cidadãos pobres de países industrializados parecerem privilegiados.
Filantropia: Tendo por base as condições precárias em que se encontram bilhões de pessoas no mundo e sabendo que, por mais que sejam feitos grandiosos investimentos no campo social, não há como reverter essa situação a curto ou médio prazo, como você se posiciona frente a esse cenário?
BG: Apesar de toda a desigualdade e injustiça que há por aí, o mundo está começando a melhorar. Pelo menos, está melhor do que já foi no passado. Basta verificarmos as condições das mulheres e das minorias na sociedade; o aumento na expectativa de vida, que praticamente dobrou nos últimos cem anos; a quantidade de pessoas que hoje em dia tem direito de votar e manifestar suas opiniões, entre tantas outras coisas. Nestas áreas cruciais, que proporcionam bem-estar ao ser humano, o mundo está melhor.
Essas melhorias foram ocasionadas por avanços na tecnologia, ciência e medicina. Para as próximas décadas, espera-se que tenhamos a possibilidade de diagnosticar diversas doenças e curá-las, educar nossas crianças para o mundo, criar oportunidades para os mais pobres e aproveitar as mentes mais brilhantes para buscar soluções para nossos problemas mais complexos.
É assim que eu vejo o mundo, e é por isso que eu afirmo que sou um otimista. Mas sou um otimista impaciente. É fato que o mundo está melhor em muitos aspectos, mas não está melhorando tão rápido quanto eu gostaria, nem está bom o bastante para todas as pessoas.
Filantropia: Quais suas perspectivas em relação à fundação para os próximos anos?
BG: Vejo o futuro com bastante otimismo. Estamos eterna e profundamente agradecidos pela doação que Warren Buffet [empresário norte-americano considerado o homem mais rico do mundo, com fortuna estimada em US$ 62 bilhões] fez à nossa fundação em junho de 2006, que nos permitirá duplicar nossas concessões de fundos a partir de 2009. Essa grandiosa doação, de aproximadamente US$ 30 bilhões, nos inspira e nos faz adquirir ainda mais consciência da oportunidade e profunda responsabilidade que temos de promover um impacto duradouro sobre as pessoas necessitadas.
Alguns dos problemas nos quais estamos atualmente trabalhando já têm solução, e nosso objetivo é colocar tais soluções ao alcance de todos. Para outros problemas, que até agora não haviam recebido a atenção merecida, cremos que a concentração de esforços nos permitirá alcançar avanços surpreendentes. Enfrentamos grandes desafios, mas é igualmente grande a oportunidade de melhorar a vida humana.
Dados • Fundação é presidida por Bill Gates, Melinda French Gates e William H. Gates Sr. • Atua nos Estados Unidos e em mais de cem países • Possui 543 funcionários • Recebeu US$ 37,3 bilhões em doações de terceiros |