Pensar na vida e nas questões humanas é, antes de mais nada, tentar o tempo todo nos descobrir, não obrigatoriamente no setting terapêutico, mas nos reconhecendo no mundo e visitando sentimentos que nos causam reações. Este contato nos provoca o desejo de buscar explicações que nos conforte e tranquilize, algo não fácil, considerando que nossa subjetividade é fator importante neste processo.
Refletir sobre a conduta humana, motivações e reações diante das vicissitudes da vida, é revelador; compreender o mundo que nos cerca, preserva e promove segurança, e isto é comumente almejado pelas pessoas. Nesta perspectiva, algo tem me intrigado com mais veemência nos últimos tempos: trata-se da normalidade que percebo nos olhares e reações humanas acerca do mal.
Talvez eu não saiba nomear este sentimento; este incômodo sentimento, que, nem sei ao certo, mas parece me constranger em diversos momentos. Outro dia, conversando com amigos, um termo me pareceu adequado para expressar o que digo: a banalização do mal, subtítulo do livro Euchmann em Jerusalém, de Hannah Arendt. Nesta conversa, bem como em encontros com outros pares – penso ser ideal assim chamar pessoas com quem tenho vontade de dividir sorrisos e pensamentos –, buscávamos respostas ao que as pessoas apresentam diante da maldade, sendo elaborado que talvez assisti-la seja confortante.
No momento em que iniciava a construção deste texto, brotado de minha inquietação, meu desconforto foi inflamado ao ouvir uma história de alguém muito próximo, uma descrição da violência e da reação frente a ela. Um rapaz alcoolista foi atropelado, sem nenhum motivo aparente, sem briga ou discussão, apenas porque incomodou alguém – afinal, não estava cheiroso ou elegante, e o que não é bonito não é interessante à maioria das pessoas. Um jovem de 25 anos deu marcha ré em seu carro e acelerou propositalmente, atropelando o rapaz no canto da rua e quebrando suas duas pernas. Logo depois, guardou o carro com tranquilidade e continuou sua rotina; certamente acreditando que não haveria consequências, pois quem se importaria com alguém assim? A polícia, o resgate e a família chegaram, sendo a vítima atendida e colocada em segurança.
Contudo, esta história me remete à naturalização do mal, em decorrência da maneira como todos os presentes reagiram. Em seus discursos, declaravam indignação, mas não desejavam se envolver e preferiam não informar os fatos à autoridade; pareciam extremamente interessados em falar sobre o assunto com a família e outros moradores, morbidamente interessados; como aquele espectador que faz careta frente à televisão diante das desnecessárias cenas de violência, mas, no dia seguinte, repete a sensação. O assunto foi notícia no bairro nos dias que seguiram, ainda com todos fazendo indagações à família e buscando conhecer detalhes. Uma indignação incoerente, talvez o referido conforto, com a certeza de que o atropelador é ruim, reiterando a bondade dos demais. Vale salientar que, neste caso, o medo não é a causa para o silêncio, sendo notória a percepção de que a vida é assim, as pessoas são terríveis assim, e, embora muitos falassem do quanto se sentiam afetados, comportavam-se como plateia de um filme triste, uma sensação que depois passa, experimentação de telespectador frente ao mal, em que automaticamente todos os outros são bons.
É indubitável que falo do mal, que não cabe questionamento sobre o significado. Ainda que considerado o relativismo ético, trata-se do que se opõe ao bem, fere e prejudica. Falar do mal nos remete ao que é o bem, sendo válido esclarecer que o bem pensado, não é o filosófico, que seria a excelência ética, mas sim o possível, preservador e humano.
O mal existe desde sempre, contudo, o que me importuna não é a maldade ou a inércia diante dela, e embora concorde, não me sinto contemplada em meus pensamentos com a frase de Martin Luther King: “O que me incomoda não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”. O objeto de minha preocupação não é o silêncio, e sim o conforto diante das demonstrações do mal. Um estranho conforto; daí compreendemos o sucesso dos detentores de audiência televisiva de nossa época, em que uma plateia anestesiada parece incapaz de refletir acerca das causas e consequências dos fatos.
É utópico pensar na inexistência das tristezas, misérias, decepções etc., afinal, deparamo-nos cotidianamente com os infortunos reais. Contudo, não é natural ver repetidas cenas de violência e, alguns minutos depois, esquecer, sair para jantar e, no dia seguinte, repetir a mesma rotina, sem ao menos pensar a respeito, e isto é o que considero a naturalização do mal.
É a banalização do mal. Ver a exposição, e até a exploração, do sofrimento e da violência e apenas nos dizer indignados por alguns minutos, em nosso cômodo lugar. Talvez este estranho conforto seja explicável através das comparações com o mal, porque diante do que é mesquinho e cruel é fácil ser justo e bom, mas esta lógica nos coloca em comparação ao que há de pior, e, sendo assim, não preciso me esforçar para ser bom. Uma enganosa absolvição, afinal, não nos mostramos assim tão ruins frente aos vigorosos exemplos da maldade.
Mas, afinal, o bem incomoda?
Provavelmente, mas de forma subjetiva.
O bem é exigente, requer disponibilidade, mudanças, buscas, descobertas, reconhecimento de fragilidades e de nossos sentimentos não tão louváveis, simplesmente humanos.
Não há aqui a intenção de comprovar uma verdade, ou a angústia expressada; é apenas sentimento, sem radicalidade ou negação do ser autêntico. É apenas sentimento.