A extensão das perdas econômicas e sociais como consequência da atual pandemia do coronavírus ainda não está clara. O que sabemos é que a vida vai seguir, que o conceito de normalidade será radicalmente modificado, e que os dedicados profissionais do Terceiro Setor continuarão seu trabalho humanitário e de desenvolvimento social. Mas o que mudará no dia a dia destes profissionais? Como os projetos que gerenciam serão afetados? Mesmo antes de entendermos os desdobramentos dos eventos atuais, mudanças já estão ocorrendo na forma que projetos são gerenciados.
Quase a totalidade dos projetos sociais e humanitários são executados em parceria com organizações sociais locais, de base comunitária, mas gerenciados por profissionais baseados em escritórios centrais de organizações não governamentais nacionais ou internacionais. Na medida em que aumenta a distância entre os gerentes de projetos e as comunidades onde de fato as atividades ocorrem, em virtude do isolamento social e das restrições de viagens, surgem perguntas como: a comunidade e parceiros dispõem das ferramentas e mecanismos necessários para gerenciar e implementar os projetos? Como poderemos continuar apoiando seu trabalho remotamente?
Nos últimos anos, especialistas e organizações vêm discutindo como os projetos de ajuda humanitária que respondem a emergências em países em conflito e crises ambientais, políticas e econômicas, poderiam progressivamente se tornar iniciativas de desenvolvimento social de médio e longo prazo.
Projetos humanitários, em um primeiro momento, respondem a necessidades básicas como alimentação, acesso à água, saúde, e proteção/moradia, em um ambiente de mudanças constantes e imprevisíveis. Além do pouco tempo para identificar estas necessidades, os ciclos de planejamento e adaptação são muito mais curtos do que em um projeto de desenvolvimento. O apoio técnico (gestão do projeto) fornecido pelas organizações nacionais e internacionais é prestado remotamente ou com visitas rápidas para acompanhamento in loco.
Uma vez que o conflito é reduzido ou o estado de emergência começa a se estabilizar, estas iniciativas precisam migrar para uma intervenção que crie condições de desenvolvimento das comunidades e restabeleça a antiga normalidade. Nesta transição, gerentes de projetos humanitários buscam as técnicas, metodologias e a experiência de projetos de desenvolvimento social de longo prazo.
O conceito de normal ou normalidade está mudando, em todo o mundo e em todos os contextos. Agora são os gerentes de projetos de desenvolvimento que precisam aprender com a experiência dos projetos humanitários em como lidar com a imprevisibilidade e a necessidade de mudanças rápidas. Mesmo almejando mudanças que só podem ser alcançadas no médio e longo prazo, os projetos de desenvolvimento precisam ser executados com processos semelhantes aos de uma situação de conflito ou emergência, fracionando as ações em intervenções muito mais curtas, ágeis, adaptáveis, e com base em um apoio técnico remoto e intermitente.
Uma das disciplinas mais importantes na gestão de projetos humanitários ou de desenvolvimento é o gerenciamento de riscos. São identificados e avaliados riscos que podem afetar uma atividade, um conjunto de atividades e seus resultados, ou o projeto como um todo.
Dentre as várias categorias existentes, os riscos podem ser classificados como de natureza econômica, política, técnica, estratégica, ou ambiental. Riscos técnicos, por exemplo, podem afetar um conjunto de atividades, enquanto políticos e ambientais podem inviabilizar resultados ou o projeto como um todo.
Mas, mesmo um risco que impacte na viabilidade de todo o projeto, possui uma abrangência de impacto e uma duração limitadas, afetando um projeto (ou alguns), em um único local (ou poucos). Talvez apenas a equipe deste projeto específico seja afetada.
Tomando como exemplo um risco econômico de alto impacto, como a flutuação cambial, um projeto que recebe financiamento do exterior pode ter suas atividades reduzidas ou canceladas parcialmente, porque os recursos financeiros disponíveis foram reduzidos durante uma queda na cotação da moeda estrangeira. Mesmo que esta queda seja de longo prazo ou permanente, inviabilizando o projeto, apenas este projeto e outros que dependem de recursos do exterior serão afetados. Há ainda alternativas de resposta a este risco que podem reduzir seu impacto, como diversificar as fontes de recursos do projeto (nacionais e internacionais) ou negociar com o parceiro financiador um orçamento flexível de acordo com a taxa de câmbio.
Não há negociação com uma pandemia global. A crise que enfrentamos mostrou que um risco (que não foi previsto) é capaz de afetar todos os projetos, em todos os locais, e desestruturar o funcionamento de todas as equipes – agentes comunitários, parceiros locais, representantes governamentais em todos os níveis, equipes de suporte, e gerentes de projetos. Percebe-se ainda uma outra característica marcante da atual crise: a duração do risco e de seus efeitos.
A adaptabilidade ou flexibilidade do orçamento, escopo, e tempo dos projetos neste novo cenário pós COVID-19 deverá ser maior e mais ágil. Não apenas os projetos mas também as equipes precisão ter uma nova e fortalecida resiliência, sendo capazes de resistir sob pressão durante um período muito mais longo, e com efeitos muito mais abrangentes e duradouros.
Em artigo na Revista Filantropia no 85 (Profissionalização da Gestão de Projetos Sociais: Muito Além do Fortalecimento Organizacional), foi evidenciada a necessidade de fortalecer a capacidade técnica dos profissionais do Terceiro Setor na gestão de projetos, com o objetivo de desenvolver uma linguagem comum que conecte os gerentes de projetos, muitas vezes remotos, e as equipes de implementação dos projetos, com atuação local.
Está cada vez mais claro que apenas os parceiros locais e a própria comunidade serão capazes de alcançar aqueles em necessidade e, como já ocorria antes, provocar as mudanças sociais positivas. Estas equipes locais devem ter os instrumentos necessários não apenas para implementar, mas também para gerenciar todas as fases e os componentes do projeto, de forma autônoma e eficiente.
Se o modelo atual não se adaptar, e a gestão de projetos continuar sob responsabilidade de um gerente remoto, o desenho do projeto, resultado da fase de identificação e definição, pode
tornar-se menos participativo e mais top-down em virtude da distância entre o gerente do projeto e os parceiros locais e comunidade, e do tempo ainda mais reduzido para esta etapa. Como consequência, os projetos podem não identificar as reais necessidades ou o problema real, ou não coletar dados suficientes, levando à execução do “projeto errado”.
O planejamento e a implementação do projeto, por sua vez, precisarão de uma nova leitura do sequenciamento de atividades, estimativa de duração, alocação de recursos, e adaptação. O uso de metodologias ágeis deverá permear todos esses processos, dividindo o projeto em intervalos mais curtos, buscando estabilidade nos recursos e custos, e permitindo flexibilidade no escopo e entregas. Na relação entre parceiros locais e organizações nacionais ou internacionais, esta agilidade e flexibilidade não são (ainda) uma característica normalmente encontrada.
Este novo contexto global apenas aumenta a necessidade de fortalecer o conhecimento técnico dos parceiros locais com ferramentas e boas práticas como as do Project DPro (PMD Pro) e com metodologias ágeis como o AgilePM, para que possam de fato gerenciar seus projetos, desde a identificação de necessidades e desenho, até seu encerramento e perenidade das mudanças sociais e econômicas promovidas pelo projeto.
O futuro nos reserva uma maior proximidade de características entre projetos de desenvolvimento e humanitários, em que autonomia, resiliência, agilidade, empoderamento, e adaptabilidade serão fundamentais na gestão de projetos, neste novo “normal” que mal começamos a entender e a nos acostumar.
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