Estudos nas áreas de demografia, antropologia e demais ciências humanas e sociais1 mostram a existência de uma cultura muito antiga de ajuda mútua entre famílias brasileiras. Essa ajuda mútua, por vezes, é expressa pelo cuidado familiar de crianças e adolescentes como "filhos de criação", assumidos por outra família ou por alguém pertencente à família extensa. Esses cuidados também são estudados como um fenômeno de circulação de crianças, que se realiza naturalmente, sem que haja uma afiliação, e, na maioria das vezes, sem chegar à regularização de guarda, de tutela ou de adoção. Essas ações têm sido reconhecidas, nos dias de hoje, também como Acolhimento Familiar Informal.
Estudos mostram, ainda, que essa cultura aparece em todas as classes sociais no Brasil, mas com maior ênfase entre as famílias empobrecidas, as quais acabam por lançar mão dessa ajuda para a resolução de problemas enfrentados em seus diversos momentos de vida. Esse tipo de relação torna-se mais necessário na medida em que não existam políticas públicas suficientes e eficazes para atender às questões postas a esses segmentos no Brasil: famílias jovens, famílias empobrecidas, famílias que enfrentam separações ou em recasamentos veem na solidariedade de sua rede de apoio meios para minimizar sérios problemas de subsistência e de sobrecarga no cuidado de sua prole.
O fim do século XX, no Brasil, foi marcado por um renovado conjunto de ações focadas na proteção aos direitos de crianças e adolescentes. Na década de 1990, o acolhimento familiar, que era realizado informalmente no país, passou a se desenvolver pela perspectiva de uma política pública. Pode-se afirmar que essa mudança teve base no compromisso brasileiro com a promoção de desenvolvimento humano e social assumido com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil (CF/1988)2, que se faz sentir, entre outras áreas, na infância e na adolescência, com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)3; e, na área da assistência social, com a Lei Orgânica da Assistência Social (Loas/93)4.
A partir da aprovação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004)5, o acolhimento familiar, assumido como uma política pública, passou a ser regulamentado para sua implementação em todo o território nacional. Sendo a assistência social uma política pública – direito do cidadão e dever do Estado –, foi por meio da PNAS que uma gama de direitos humanos e sociais, antes tratados apenas no âmbito individual, passou a ser assumida como compromisso universal na agenda dos entes públicos, afiançados como responsabilidade pública e estatal. A principal mudança foi o compromisso de criação de programas, serviços e benefícios que atendessem diretamente às situações de vulnerabilidade social e que resultassem em ações emancipatórias, e na perspectiva de que essas ações assumissem um caráter preventivo e inovador, transpondo o paradigma da urgência e da emergência e avocando o do direito e da prevenção, tendo o usuário como protagonista das mudanças.
No contexto desse movimento, com a aprovação da PNAS, em 2004, o serviço de acolhimento em família acolhedora, passando a ser executado como política pública, também foi reafirmado com a mudança provocada pela aprovação da Lei nº 12.010/096, que alterou o ECA. Os serviços de acolhimento em famílias acolhedoras passaram a ter preferência ao acolhimento institucional (§ 1º do art. 34). Porém, a realidade de sua efetivação apontou ainda para a grande necessidade de investimentos pelo Estado no sentido de sua regulamentação e incentivo para a criação de uma cultura que seja assumida pelo conjunto da sociedade.
O Estado, além do dever de proteger a família e os indivíduos com vistas à superação das questões postas em seu cotidiano, precisa exercer diretamente o cuidado e a proteção no espaço da proteção social especial de alta complexidade nos casos em que a criança e/ou o adolescente necessitem ser afastados do convívio familiar, sob medida protetiva. Quando isso ocorre, essas crianças e esses adolescentes são acolhidos em serviços que devem prover suas necessidades imediatas, e, de acordo com o que já foi exposto, a primeira medida de proteção deveria ser sempre o serviço de acolhimento em família acolhedora.
O Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora é aquele que organiza o acolhimento de crianças e adolescentes, afastados da família por medida de proteção, em residência de famílias acolhedoras cadastradas. É previsto até que seja possível o retorno à família de origem ou, na sua impossibilidade, o encaminhamento para adoção. O serviço é o responsável por selecionar, capacitar, cadastrar e acompanhar as famílias acolhedoras, bem como realizar o acompanhamento da criança e/ ou do adolescente acolhido e sua família de origem.7
Como uma medida de proteção, o serviço deve realizar um trabalho psicossocial, levando sempre em consideração o caráter excepcional e provisório do acolhimento. Deve assumir como necessidade fundamental e prioritária a preparação da reintegração familiar, de forma protegida. Para isso, torna-se imprescindível o acompanhamento à família de origem/extensa – em corresponsabilidade com a rede de proteção e a Vara da Infância e da Juventude – para que, com qualidade, as ações possam ocorrer de maneira ágil, como o próprio momento da criança e do adolescente exige. Na impossibilidade de retorno à família de origem/ extensa, deve ser realizado o trabalho de encaminhamento para uma família substituta, garantindo o direito à convivência familiar e comunitária.
Entende-se aqui por família acolhedora aquela que voluntariamente tem a função de acolher em seu espaço familiar, pelo tempo que for necessário, a criança e/ ou o adolescente que, para ser protegido, foi retirado de sua família, respeitando sua identidade e sua história, oferecendo-lhe todos os cuidados básicos mais afeto, amor, orientação, favorecendo seu desenvolvimento integral e sua inserção familiar, assegurando-lhe a convivência familiar e comunitária.8
Na atual conjuntura do país, existindo poucos serviços dessa natureza, a segunda opção costuma ser a regra: as crianças e os adolescentes são encaminhados a serviços de acolhimento institucional (abrigamento). Tanto um quanto outro serviço deve trabalhar em conjunto a rede de proteção integral para que, uma vez solucionado o motivo pelo qual foi necessária a aplicação da medida protetiva, a criança ou o adolescente possa voltar ao convívio de sua família de origem ou extensa.
Como se está buscando colocar, os primeiros anos do século XXI são marcados por uma nova postura no cenário brasileiro; foi em 2006 que a conjunção dessas mudanças no tratamento à criança e ao adolescente sob medida protetiva encontrou expressão na aprovação do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC/2006)9. Construído com base em uma pesquisa de 2004 sobre o abrigamento de crianças e adolescentes, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que demonstrou que o direito à convivência familiar e comunitária era amplamente violado, o PNCFC erigiu esse direito como norte para as políticas públicas relacionadas à criança e ao adolescente.
Com a aprovação da Lei nº 13.257/1610, que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e alterou a Lei nº 8.069/90 (ECA), foi acrescido ao art. 34 do ECA o § 3º, que diz: "A União apoiará a implementação de serviços de acolhimento em família acolhedora como política pública, os quais deverão dispor de equipe que organize o acolhimento temporário de crianças e de adolescentes em residências de famílias selecionadas, capacitadas e acompanhadas que não estejam no cadastro de adoção". O art. 34 da mesma lei passou a vigorar acrescido do seguinte: "§ 4º – Poderão ser utilizados recursos federais, estaduais, distritais e municipais para a manutenção dos serviços de acolhimento em família acolhedora, facultando-se o repasse de recursos para a própria família acolhedora".
Deve ainda receber outros aportes, conforme determina o art. 260 do ECA, como segue: "§ 1º-A. Na definição das prioridades a serem atendidas com os recursos captados pelos fundos nacional, estaduais e municipais dos direitos da criança e do adolescente, serão consideradas as disposições do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária e as do Plano Nacional pela Primeira Infância".
Um importante avanço pode ser verificado no compromisso do Brasil na elaboração do Projeto de Diretrizes das Nações Unidas sobre emprego e condições adequadas de cuidados alternativos com crianças, apresentado pelo Brasil ao Comitê dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU), em Brasília, em 31 de maio de 2007. O documento foi intensamente trabalhado em diversos países do mundo e, entre tantas diretrizes, assumiu o compromisso de uma vez, tendo a necessidade da separação da criança de seu meio familiar, que esta seja cuidada em 'família', principalmente as crianças pequenas, menores de três anos11.
1No Brasil, destacamos: RIZZINI, I. A internação de crianças em estabelecimentos de menores: alternativa ou incentivo ao abandono? USU Cadernos de Cultura, Rio de Janeiro, n. 11, 1985; RIZZINI, I.; RIZZINI, I. A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do presente. Rio de Janeiro: PUC-Rio/São Paulo: Loyola, 2004; RIZZINI, I. Assistência à infância no Brasil: uma análise de sua construção. Rio de Janeiro: EDUSU, 1993; FONSECA, C. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 1995; VENÂNCIO, R. P. Famílias abandonadas: assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e Salvador – séculos XVIII e XIX. Campinas: Papirus, 1999; MARCÍLIO, M. L. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998/2006; ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Projeto de diretrizes das Nações Unidas sobre emprego e condições adequadas de cuidados alternativos com crianças. Brasília, 31 maio 2007; DI PIERONI, G. Os excluídos do reino: a inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil colônia. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado/UnB, 2000.
2Disponível em: <https://goo.gl/4q3nTq>. Acesso em: 5 jun. 2017.
3Disponível em: <https://goo.gl/XxSco9>. Acesso em: 5 jun. 2017.
4Disponível em: <https://goo.gl/9aIEg7>. Acesso em: 5 jun. 2017.
5Disponível em: <https://goo.gl/9b3uk6>. Acesso em: 5 jun. 2017.
6Disponível em: <https://goo.gl/Ep2FJB>. Acesso em: 5 jun. 2017.
7BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009. Brasília: MDS/CNAS, 2009.
8Valente apud RIZZINI, I. (org.) Acolhendo crianças e adolescentes. SP: Cortez/DF: Unicef/RJ: PUC-RJ, 2006, p. 61.
9Disponível em: <https://goo.gl/UsclRu>. Acesso em: 5 jun. 2017.
10Disponível em: <https://goo.gl/WqokZv>. Acesso em: 5 jun. 2017.
11O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) lançou a campanha #falePorMim em parceria com outras entidades na América Latina, entre elas, a Relaf. A ação tem como objetivo mobilizar a sociedade e os governos para acabar com a institucionalização de crianças com até 3 anos de idade. Segundo o Unicef, para cada ano que uma criança fica institucionalizada, ela perde quatro meses em seu desenvolvimento.
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