“Com o Serviço Social, comecei a pensar!”

Por: Aurimar Pacheco
21 Agosto 2013 - 00h53

A sala 14 da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação (FAPCOM) estava fria no final de uma tarde de outono do último mês de maio. Sentada na cadeira do professor, Edézia Conceição da Silva estava bem à vontade para falar de si, do Serviço Social e das novidades que sua vida experimentou nos últimos anos.
Usava brincos com motivos incas, óculos de grau com armação trabalhada em xadrez, conjunto de veludo vincado preto, cachecol lilás esmaecido. Sem esmalte nas unhas ou outros artifícios que disfarçassem seus cinquenta e quatro anos, apenas os teimosos fios brancos na raiz negavam, pela autenticidade, a pintura escura tendendo ao ruivo dos cabelos pelos ombros, detidos num “rabo de cavalo”.
Como arremate do conjunto, uma tiara degradé. Várias cores lembrando as mudanças que Edézia narrara ou, em instância poética, simulando um arco-íris como promessa do pote de ouro do conhecimento no final dele.
Filha de mineiro e baiana, essa paulistana moradora do Jardim Maringá, na zona leste de São Paulo, passou 28 anos sem estudar. Nesse tempo, apenas flertou com as possibilidades de ser médica, advogada ou publicitária, sem, no entanto, conseguir atingir o nível universitário.
Reprovada na USP por três vezes, que somente tentou por ser pública, fez curso comunitário de preparação e passou bem pelo ENEM, iniciando, a partir daí, a graduação na região em que mora, quando se descortinou o Serviço Social, concluído em dezembro de 2012, como um novo destino, uma promessa de vida no seu coração.
Edézia é a terceira de sete filhos e mãe dos adolescentes Julia e Luís Fernando, para quem, hoje, tem de responder perguntas como: “será que serei tão inteligente como você?” Essa, entre outras perguntas, começaram depois que nossa entrevistada ouviu seu chefe na UBS do Jardim São Francisco, no extremo leste de São Paulo, que, reconhecendo seu talento para lidar com o público, a aconselhou a cursar Serviço Social.
Hoje, Edézia tem a convicção dos convertidos, de quem chegou à terra prometida, e declara: “Com o Serviço Social, comecei a pensar!”
Aluna do curso de Extensão Comunitária “Gestão de Serviços Socioassistenciais” da PAULUS/FAPCOM, Edézia representa um contingente de pessoas que buscaram no Serviço Social seu nível de instrução superior. Edézia perfila o profissional que chega tarde ao mercado de trabalho, faz o caminho mais tortuoso e demorado, mas comemora sua conquista com um rejuvenescimento instantâneo, quando fala de sua trajetória.
Admite as dificuldades, lamenta os entraves criados por professores e a burocracia da escola para com os mais experientes, mas orgulha-se do que conquistou. Considera o curso que está fazendo como o grande divisor de águas de sua vida profissional. Reputa que os conhecimentos que adquiriu aqui não só complementam o que aprendeu na faculdade, como também lhe apresentam uma faceta nova e desafiadora da profissão que resolveu abraçar: “hoje posso conversar com meu marido, de igual para igual”.
Mais adiante, reconhece: “sei que preciso aprender muito ainda, mas hoje me sinto com capacidade para ser gestora”, orgulha-se. Aliás, assegura com a razão em riste: “se hoje eu fizesse as entrevistas e concursos que tentei antes daqui, sei que seria aprovada”.
Edézia não pretende parar tão cedo. Prepara-se para fundar uma ONG que ofereça o serviço de proteção social especial para pessoas com deficiência, idosos (as) e suas famílias. Garante que tem aptidão, habilidade e, agora, preparo técnico para gerir um serviço dessa natureza dentro das especificações do SUAS. “É tão bom quando se sabe por onde começar”, comenta com a certeza de seu futuro próximo. “Agora faço parte da sociedade”, diz com alguma displicência, como quem dobrou uma esquina e testemunhou seu segundo sol.
Edézia certamente não está só. A Assistência Social brasileira credencia-se para o mundo como um marco de garantia de direitos e respeito à vida. Os profissionais envolvidos na assistência sempre foram pouco valorizados. Havia uma falácia geral de que assistência social era coisa de mulheres generosas, de espírito nobre e benevolentes com os desajustados, que, via de regra, eram considerados os principais culpados por seus próprios infortúnios.
O papel feminino no desempenho do trabalho social mimetizava-se com valores religiosos e caritativos. A máxima de que “assistência qualquer um faz” prevaleceu anos a fio e, se qualquer um faz, não havia necessidade de oferecer melhores condições para os envolvidos no processo de atendimento, fossem eles usuários ou cuidadores.
O exemplo de Edézia é paradoxal. Exprime uma forma de virada dessa página chamada assistencialismo, também conhecido como amadorismo ou bom mocismo bem intencionado, que tutelava pessoas e as tratava como não sujeitos. Edézia e suas milhares de colegas Brasil afora se preparam para conduzir o SUAS no país. Elas têm a consciência de que falta muito para atender as demandas. As Políticas Públicas ainda são insuficientes e isso causa muita frustração ao profissional de Serviço Social. Mas Edézia entra em surto de satisfação quando se lembra das professoras Maria Inês Bravo e Maria Lúcia Martinelli.
A segunda citada, vai mais longe e exulta a capacidade da mestra em convencer e nutrir a autoestima dos profissionais do Serviço Social, levando-os à emoção de serem os agentes de transformação de vidas e oportunidades. “Ela nos ensina a compreender o que o homem traz dentro de si e ainda vou ser como ela”, planeja, tendo no fundo dos olhos o brilho umectante dos que sabem o que querem para si.
O projeto de vida de Edézia coincide com o de dezenas de milhares de outros profissionais que se qualificam para ser reconhecidos, terem melhores salários e serem partícipes da vida moderna. “Consigo pegar do computador o que preciso dele”, diz triunfante.
O Google é citado como uma ferramenta dominada e a serviço de seus interesses, e o assunto caminha para um desfecho mais importante quando ela constata: “desde que me formei, mais duas irmãs começaram a estudar”. As duas cursam Letras e História, e cunham, no fabuloso destino de Edézia, sua vitória mais discreta e citada sem a ênfase das vaidades efêmeras: “sou referência na família”.
Quando perguntada sobre arte, cita o filme Ensaio sobre a Cegueira (2008), de Fernando Meireles, como marcante em sua vida. A cegueira branca que se esvai tendo a mulher como a grande redentora de todos os personagens parece comover nossa entrevistada. Sem citar propriamente José Saramago, autor do livro que inspirou a obra, nossa profissional do SUAS falou de si e de seus planos e, em nenhum momento, lamentou o tempo que lhe passou. Apenas apontou o que ainda virá.
A citação de Saramago parece ecoar para as Edézias da “vida, esta vida que inapelavelmente, pétala a pétala, vai desfolhando o tempo”, que, no caso de Edézia, finalmente parece que parou “no bem-me-quer”.

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